GROSSERIAS NA RUA? NINGUÉM MERECE
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GROSSERIAS NA RUA? NINGUÉM MERECE


Homens falam grosserias pra mulher na rua. Marido diz: "Se as mulheres na rua dissessem que eu sou atraente, ficaria radiante".

Toda vez que falo contra grosserias na rua vem leitor dizer que deveríamos ficar felizes por estarmos sendo elogiadas... desde os dez, onze anos. Ou que não é nada de mais, e que eles adorariam se mulheres fizessem o mesmo com eles. Ou leitores que confundem falar grosserias na rua com paquerar, como se eu, feminista, quisesse acabar com todas as formas de relacionamento entre homens e mulheres na face da Terra.
Esta reação vem de um sentimento que em inglês se chama entitlement. Não há uma tradução exata, mas seria algo próximo de merecimento, algo que anda junto com o privilégio. Homens sentem-se meredores de fazer uma série de coisas. É bem o sentido de “eu posso; você, mulher, não”. Então homem pode e deve ter muitas parceiras sexuais, enquanto que pra mulher é preferível casar virgem. Homem pode trair se enjoar da esposa, mas ai se a recíproca for verdadeira. Homem pode sair com os amigos, mas pega mal pruma mulher largar a família pra ir ao cinema. E o homem pode, merece até, mexer com todas as mocinhas que ele julgar apetitosas, desde que elas estejam desacompanhadas. Não importa se a mocinha estiver com cara de poucos amigos, ou que ela esteja num dia ruim, ou que ela não esteja interessada, ou que ela, naquele momento, só queira locomover-se de um lugar a outro. Não é o desejo dela que será levado em consideração; é o dele. E ele pode fazer tudo aquilo por apenas um motivo — ele é homem. A sociedade realmente dá esse direito a seres humanos com pênis.
Pra muitos homens, dizer grosserias na rua não é só um direito, como também um dever. É um exercício da sua masculinidade. Serve pra mostrar que, mesmo num mundo com tantas mudanças, em que as mulheres trabalham fora e já ultrapassaram o “sexo forte” em matéria de educação formal, ainda são eles que mandam. Só quem está numa situação de poder pode julgar, e uma grosseria na rua é uma forma de julgamento. Os linguistas dizem que um dos maiores indicadores de poder é quem começa uma interação verbal. Com uma grosseria, a interação está iniciada. Este assédio é também um método eficaz de terrorismo sexual, pra lembrar que a qualquer momento esse “inocente” grito de “Vou te chupar todinha” pode se transformar numa passada de mão. E a passada de mão vira um outro aviso de que quem pode tocar num corpo alheio sem permissão também pode fazer outras coisas.
Eu me lembro da Marcha das Vadias de Fortaleza, em junho. Pra chegar até uma das entradas da faculdade, onde era a concentração pra marcha, era preciso passar por uma rua. Só que um lado da rua estava tomado por homens descansando, sentados e deitados na calçada. Toda mulher que ia naquela direção (com qualquer roupa) atravessava a rua para não ter que passar por eles. Claro que mesmo do outro lado da rua eles gritavam suas gracinhas. Mesmo num evento feminista que reivindicava o direito da mulher sobre seu próprio corpo, aqueles rapazes mostraram que a rua era deles. Mas por que a rua seria mais deles do que de uma mulher? A rua é um espaço público, não tem dono. Dizer que mulheres não podem ocupar esse espaço é um ato político de longa data. Equivale a dizer que o espaço da mulher é apenas o doméstico. Esta é uma das formas de controle que continuam sendo utilizadas para manter as mulheres no seu lugar. Logo, quando um homem, sozinho ou em grupo, diz grosserias pra uma mulher na rua, ele está reforçando essa mensagem. Está dizendo que, se ela não estivesse lá na rua — onde não é o seu lugar — sozinha, vulnerável, “à disposição” (sabemos que toda mulher sozinha está disponível), ela não seria abordada. O homem é um patrulhador à paisana!
Esse ritual de dominação encontra apoio de todos os setores. Faz uns três anos, uma turista israelense em férias na Nova Zelândia (país de primeiro mundo) estava tentando tirar dinheiro de um caixa automático. Depois de se indignar com as incessantes grosserias que teve de ouvir enquanto fazia aquilo, ela se despiu. Os caras ficaram calados, embasbacados. Ela se vestiu e foi embora. Mas qual não foi sua surpresa quando foi levada a uma delegacia de polícia e repreendida pelo que fez? É, uns carinhas gritarem insultos é okay, tolerado, até incentivado. Mas uma mulher responder? Aí não, aí não pode.
O que o sujeito que fala grosserias quer dizer no fundo é que não importa se a mulher tem uma carreira de sucesso, ou é uma ótima mãe, ou é uma excelente aluna na escola ou na faculdade, ou faz mil e uma coisas que nada tem a ver com sua aparência física — o ponto final é que ele, homem, tem direito de escrutinar e julgar o corpo dela e lembrá-la sempre da sua função principal no mundo, que é excitá-lo. Pros homens que acham que isso não é motivo pra se abater, recomendo um vídeo que uma doutoranda brasileira vivendo na Argentina me enviou. Nele, um jovem é assediado por várias mulheres bonitas, que lhe dizem, uma a uma: “Olá, lindo. / Te caiu um papel. O que te envolve, bombom. / Acredita em amor à primeira vista? Porque senão, amanhã volto de novo. / Ah, com essa bundinha te convido a cagar lá em casa! / Te agarraria todo! / Como eu gostaria de te...biiip! Te biip toda a noite biip. Meu amor!
Em seguida, uma legenda aparece dizendo: “PARE! Imagine isso todos os dias desde que você tinha onze anos. Agora, pense que não todas são mulheres bonitas ou da sua idade. São senhoras adultas, crianças e até avós. Agora acrescente que não vivemos numa sociedade machista desde sempre, e sim femista. Acrescente que você não podia votar, que não era uma pessoa, mas uma coisa. Que você não podia trabalhar, que só prestava para limpar a casa e tomar conta dos filhos. E que sua mulher pudesse usar e abusar de você. Que ela podia te bater e te maltratar, e que você merecia isso por ser homem”. Finalmente, concluída a fantasia, uma mensagem fala direto ao espectador: “Não aguarde que a assediada seja a sua irmã, sua mãe, sua namorada, sua amiga. RESPEITE! Deixa andar pela rua em paz.
Eu passei o vídeo adiante no Twitter e algumas leitoras o criticaram por todas as mulheres que dizem grosserias serem lindas e jovens. Mas este é o ponto. É mostrar o desconforto da pessoa assediada mesmo que quem assedia seja atraente. No início do vídeo as gracinhas são bastante educadas e divertidas. O garoto estranha, mas até sorri. Só que elas vão ficando cada vez mais pesadas, e seu sorriso desaparece. Quando uma moça o persegue pela rua, gritando grosserias atrás dele, ele está visivelmente amedrontado. Como se não bastasse o desgosto com a situação, coloque aí todo um contexto de uma sociedade que agride, oprime e desvaloriza o homem. Seria bonito?
Não, não seria. Portanto, faça o favor de parar de agir como se tivesse o direito de ser um ogro.




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