GROSSERIAS MOSTRAM ESTUPIDEZ MASCULINA
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GROSSERIAS MOSTRAM ESTUPIDEZ MASCULINA


Lembro disso muito bem, como se fosse hoje: eu estava andando de carro com uns amigos na Rua Augusta (SP), indo pra alguma danceteria. E havia uma moça sozinha subindo a ladeira da Augusta, devagar, porque, afinal, é uma subida, né? De repente, todos os carros que passavam por ela começaram a buzinar. Virou um pandemônio aquilo lá, uma barulheira infernal de buzinas. A moça, coitada, só abaixou a cabeça e seguiu andando, enquanto todos os palhaços que passavam buzinavam e gritavam alguma grosseria pra ela. Eu era novinha e me senti muito mal. Não entendi o que fazia aqueles homens agirem assim, naquele comportamento de manada. E eu me pus no lugar da moça sendo hostilizada (porque desde quando buzinaço e palavrões são homenagem?). O que ela tinha feito pra receber isso? Nada, tirando o azar de ter nascido com uma vagina. E estava andando sozinha, sem um macho pra protegê-la, à noite. Não tinha nada de mais na roupa dela. Imagino que ela vestia uma minissaia parecida com a minha. Mas foi só um idiota começar a buzinar que todos os outros empatizaram com ele ― não com ela!
Só agora descobri que o meu profundo mal-estar causado por essa cena não foi incomum. Um estudo mostra que mulheres não apenas não gostam de ouvir cantadas na rua, como veem isso como uma afronta ao seu gênero. E ficam com raiva dos homens em geral, não só daquele cretino em particular. Ou seja, segundo esse estudo com 114 universitárias americanas (que assistiram a um vídeo de um carinha dizendo uma asneira para uma mulher na rua, e foram convidadas a se imaginar como espectadoras, não alvos, desse ato), falar gracinhas na rua é um desserviço que os homens prestam a todos os homens. Dá pra entender? Se você é homem e diz gracinhas pras mulheres na rua, não só não vai conseguir comer ninguém, como ainda vai martelar na cabeça da mulherada o clichê “homem não presta mesmo”.
E só pra enfatizar a primeira parte da colocação: mulheres não gostam de cantadas na rua. Preciso repetir? Rewind: mulheres não gostam de cantadas na rua. Aquela ladainha que mulher a-do-ra ouvir grosseria porque sente-se valorizada (ha, é realmente maravilhoso pra autoestima ser vista como um pedaço de carne num açougue e ouvir de um completo estranho frases da estirpe de “Eu comeria sua menstruação de colherzinha”). Se você conhece mulher que gosta de ouvir cantada, zuzo bem, mas fique sabendo que é exceção. A maior parte não gosta. Só que a gente ouve todo dia que gosta, sim. Mesmo que não goste, “no fundo” a gente adora, vai... (odeio essa idiotice de “no fundo você gosta”, porque é duvidar da minha opinião). Mas nem interessa se existe uma minoria que crê que passar na frente de uma construção faça bem pro ego. Sabe por quê? Porque os homens não cantam uma mulher pra agradá-la. Não é um ato pensando nela, mas neles. Grosserias em grupo são uma forma de socialização masculina, uma competição pra ver quem fala a besteira mais besta. E, quando é individual, é pra que o homem se lembre de quem manda, quem está no poder, quem nasceu pra avaliar, e quem nasceu pra ser avaliada. Sei que dá medo, mas experimente responder a uma cantada com um convite: “Você ganhou, garanhão! Vamos transar agora mesmo”. Quanto você quer apostar que a maior parte dos caras sai correndo? Cantada é prima próxima de estupro: tem muito mais a ver com poder que com sexo. E esse é um dos motivos pelos quais uma grosseria tem pouca relação com o jeito que a mulher tá vestida (quem já não foi cantada usando roupas hiper desleixadas?) ou mesmo com beleza (ou você acha que mulheres fora do padrão estético vigente não ouvem coisas na rua?).
Adoro um episódio de A Sete Palmos, minha série de TV preferida. Ele começa com uma moça andando na rua à noite, quando três caras atrás dela começam a lhe gritar gracinhas. Com medo, ela deixa a calçada e corre pra rua. É atropelada e morre. Mas os três carinhas não eram estupradores em potencial, e sim amigos da moça, e, adivinhe, só estavam brincando. Eles não podiam imaginar que uma mulher sendo perseguida à noite por três sujeitos gritando “Gostosa! Você sabe que você quer, vadia!” pudesse se apavorar. E claro que não sabiam. Como poderiam saber? Nunca passaram por isso. Daí segue-se um diálogo entre Rico e Nate, que trabalham numa funerária e estão preparando o corpo da moça (minha tradução fracote):
Rico: “Garotos estúpidos”.
Nate: “Mas não parece que ela meio que entrou em pânico? Talvez alguma coisa tenha acontecido com ela antes”.
Rico: “Não sei. Sabe, Vanessa [mulher dele] tem medo o tempo todo. Até quando ela sai com os meninos, ela ouve grosserias. Pergunte pra Lisa [mulher de Nate]”.
Nate: “Não tenho certeza se a Lisa ouve tanto isso. Quero dizer, ela não usa salto alto ou saia justa nem nada”.
Rico: “Vanessa diz que ela ouve o tempo todo. Até quando está usando sua calça de moletom folgada”.
Pois é. Garotos estúpidos, de fato.

P.S.: Excelentes dicas de leitoras no outro post sobre cantadas de rua: um ótimo texto (em inglês) sobre a estupidez das grosserias, e um vídeo (também em inglês) de uma mulher que questionou as besteiras que ouviu.




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