Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:É claro que alguma coisa está muito errada num debate no qual o capitão Jair Bolsonaro, porta-voz da herança da ditadura, capaz de justificar até seus crimes, tenta ficar de braço dado com um brasileiro honrado e admirável como Chico Buarque.
Para Bolsonaro, o episódio é uma forma de melhorar a própria biografia. Para Chico, a companhia - mesmo forçada - não faz bem.
Durante o regime militar, Chico teve um comportamento exemplar no combate a censura e contra a ditadura.
O esforço, tardio, para diminuir a importância desta atuação essencial é uma tentativa de nivelar por baixo a memória histórica recente, apagando responsabilidades e até forma de cumplicidade com a antiga ordem.
Discordo da postura de Chico Buarque mas é bom não fingir que há uma situação comparável, um “Quem te viu, quem te vê. ” Seu combate à censura era político. Era protesto.
Não há registro de que tenha se mobilizado para liberar colunas de fofocas, histórias de intrigas, casos de adultério e vida pessoal em geral. É disso que estamos falando, neste momento.
Se há algum respaldo jurídico a qualquer atitude que podemos chamar de censura a esse tipo de informação encontra-se nos artigos 20 e 21 do Código Civil.
Chico Buarque não tem nada a ver com ele.
A responsabilidade é dos deputados e senadores do PSDB, do então PFL que davam maioria a Fernando Henrique Cardoso no Congresso, em 2002. FHC, que sancionou o Código, teve seu papel. Poderia ter vetado os dois artigos, direito reservado a todo presidente da República. Não o fez.
Idem para o PT, que também não deixou críticas dignas de nota sobre os artigos 20 e 21. Os jornais fizeram editoriais, as revistas se escandalizaram? Também não.
“Ninguém falou sobre isso na época,” lembra Aloisio Nunes Ferreira, senador pelo PSDB paulista, que era ministro da Justiça naquele momento.
O Código Civil interessou advogados, juristas e meios de comunicação pelas novidades que trouxe no direito de família, à herança e outros assuntos. Não se percebeu que era preciso debater os artigos 20 e 21, que parecia questão sem maior interesse.
É por isso que o debate está torto, onze anos depois.
Também é bom esclarecer um ponto. Nem Chico, nem Caetano Veloso, nem Gilberto Gil, nem Roberto Carlos e nem Paula Lavigne têm qualquer responsabilidade pela febre de biografias autorizadas que se espalham pelo país, em coffee table books, de capa dura, ilustrações belíssimas, mas de conteúdo vazio. Os responsáveis são biografados que fazem a encomenda e autores que entregam.
Para entender o que se passa hoje é preciso começar pelo começo.
A Constituição de 1988 diz o seguinte, no inciso IX do artigo 5:
“ é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença ;”
No mesmo artigo 5 a Constituição afirma no inciso X:
“ são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação ;
O que se procura, nos dois incisos, é assegurar a liberdade de expressão sem ferir a intimidade e a vida privada.
Ao dizer que se assegura a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação “independentemente de censura ou licença”, a Carta deixa claro que não se pode exigir autorização prévia.
Tudo deveria estar resolvido. Está – na teoria.
Quatorze anos depois, em 2002, o Código Civil era aprovado pelo Congresso, dizendo nos artigos 20 e 21, que:
“A exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se destinarem a fins comerciais”.
A comparação entre a Constituição e o Código Civil mostra uma contradição evidente entre os textos. Mesmo uma pessoa com conhecimentos limitados e elementares de Direito, como eu, sabe que a Constituição tem primazia sobre o Código e não pode ser contrariada por ele.
Não é o que acontece, contudo, como demonstram as diversas biografias retiradas de circulação por decisão judicial. Apesar do inciso IX do artigo 5, a Justiça também tem acolhido, em instancias inferiores, pedidos de censura contra reportagens de jornais e revistas. Não há uma estatística confiável sobre o número de casos, mas são episódios significativos, que já atingiram publicações como Estado de S. Paulo, O Globo.
De forma explícita ou não, muitas proibições se apoiam no Código Civil.
Há muita confusão biográfica por aí. Mais de uma, aliás.
Se em 2002 FHC assinou o Código como presidente da República, em 1988, como senador, ele foi um dos mais influentes redatores do texto constitucional que aboliu a Censura.
Há muito a se aprender num debate histórico que levou a redação do Código Civil, iniciada em 1975 para se encerrar apenas em 2002, numa das mais prolongadas construções jurídicas de qualquer tempo. Questões como a liberdade de expressão eram colocadas de uma forma em 1975, quando o país se encontrava sob censura do regime militar, e 27 anos mais tarde, com o país já democratizado.
Penúltimo presidente do ciclo militar, o general Ernesto Geisel tomou as primeiras iniciativas para discutir o Código.
Geisel foi um presidente que compactuou com a tortura e execução de adversários políticos. Mas, pressionado de várias formas, dentro e fora do país, procurou encontrar brechas para a ditadura respirar. Seu projeto de distensão política, do qual o novo Código Civil faz parte, contou com a participação de personalidades honradas da luta pela democracia, a começar pelo jurista Raimundo Faoro.
Em todos os aspectos, o grau de liberdade política em vigor no país era precário. Não havia liberdade para formar partidos políticos. Os trabalhadores eram reprimidos em suas greves, os estudantes também. O novo Código começou a ser debatido no mesmo ano em que o Vladimir Herzog foi morto no DOI-CODI paulista.
O debate que gerou os artigos 20 e 21 foi iniciado por intervenção de um jurista, Wilson Mello de Oliveira, especializado em danos morais. Sua indicação é sintomática. O professor foi levado a fazer contribuições por sugestão de Tancredo Neves, um dos principais líderes da oposição parlamentar na época. Foi Mello de Oliveira, informam os registros do Congresso, que trouxe uma discussão nova.
Ele falou de “direito a intimidade”, uma preocupação que os brasileiros pouco discutiam, mas que era um ponto pacífico em determinados países europeus, a começar pela França, onde este direito é assegurado também as celebridades e personalidades públicas.
No contexto, o argumento do professor não se referia a censura, naquele sentido que assumiu em 2013. Morto no início dos anos 1980, o pensador Michel Foucault , um dos patronos do pensamento libertários de nosso tempo, teve direito de manter em segredo absoluto a origem da doença que o matou. Foi para livrar-se dos repórteres norte-americanos que o ator Rock Hudson preferiu mudar-se para Paris quando descobriu que precisava tratar-se de AIDS.
O debate estimulado por Wilson Mello de Oliveira falava de noções como “direito a personalidade ”e também “respeito pela pessoa humana.” O professor estava preocupado com “insinuações malévolas” e também com “problemas domésticos trazidos a fulcro.”
Claro que há uma certa ambiguidade no termo “insinuações malévolas.” Poderia impedir a divulgação de denúncias de caráter político com este argumento, que começavam a chegar aos jornais e revistas.
Aos poucos, no entanto, o debate evoluiu. A preocupação passou a ser a “honra”. Mas foram introduzidas noções subjetivas, como “boa fama” e “respeitabilidade.”
Também se tentava criar um agravante ao se condenar a publicação que tivesse “fins comerciais”. Pode-se adivinhar a preocupação, aí, contra obras produzidas sem um mínimo rigor de investigação nem de senso de responsabilidade. Mas a condenação aos “fins comerciais” envolve noções pré-capitalistas, vamos combinar.
Nem o código nem a Constituição distinguem a privacidade de pessoas públicas ou privadas. Não seria possível. Direitos fundamentais não podem ser regateados conforme os índices de popularidade do cliente. Devem valer para todos – como qualquer direito fundamental.
Na prática, a condição de pessoas pública ou privada não pode ser definida em lei. Quem faz essa distinção são os meios de comunicação, que criam personalidades públicas como parte de sua estratégia de faturamento.
Sou contra uma autorização prévia para a publicação de livros.
Mas compreendo perfeitamente os argumentos de quem se preocupa com a privacidade e a intimidade.
Após mais de 40 anos numa atividade que lida o tempo inteiro com isso, estou convencido de que a divulgação de fatos e episódios de natureza pessoal, que só podem causar dor e sofrimento às pessoas atingidas, sem nada de útil acrescentar ao debate público, é apenas lamentável.
Supondo que sejam fatos verdadeiros – o que nem sempre acontece – é de se perguntar se ainda estamos respeitando o caráter “inviolável” da intimidade, da honra, e da imagem, como determina a Constituição.
O debate é este.
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