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CLÁSSICOS DUVIDOSOS: Ligações Perigosas / Feminismo por baixo de vinte camadas de roupa
John Malkovich beija a mão de Glenn Close na versão de 88. Se me permite, como faz tempo que não vou ao cinema (quero voltar, mas os filmes têm que colaborar), vou falar de uma história que inspirou três produções, duas das quais gosto imensamente, e outra mais ou menos. Se você nasceu na década de 90, provavelmente não terá ouvido falar de nenhuma delas. Então. Quero escrever sobre Ligações Perigosas (1988), Valmont (1989), e Segundas Intenções (1999). Mas não ao mesmo tempo, nem em um só post, porque isso é material pra vários textos. Minha recomendação é que você veja ou reveja os três filmes (há um filme francês de 1959 dirigido por Roger Vadim, mas esse eu nunca vi) e leia as obras literárias em que foram baseados.Que obras são essas? A origem de tudo é Les Liaisons Dangereuses, romance epistolar (ou seja, narrado em forma de cartas – convém explicar porque daqui a pouco os jovens não vão mais saber o que são cartas – é aquele troço com envelope e selo) de Choderlos de Laclos, publicado em 1782, sete anos antes da Revolução Francesa. Valmont se baseia diretamente nessa obra, que é uma delícia de ler, porque parece um bando de fofocas reunidas (download grátis aqui. Dá pra comprar aqui também). Dois séculos depois de Choderlos, Christopher Hampton, um talentoso dramaturgo, pegou o romance e o transformou numa peça de teatro. E sabe quem fez o primeiro Visconde de Valmont nos palcos? Meu símbolo sexual Alan Rickman, em 1985! Ah, como eu gostaria de ter visto isso! A história é sempre a mesma, com variações. O Visconde de Valmont e a Marquesa de Merteuil são muito amigos, já foram amantes, e, por não terem absolutamente nada pra fazer na vida, se dedicam a intrigas e a destruir reputações. A reputação do Visconde já não é das melhores, pois ele tem o costume de transar com qualquer coisa que se mexe e de desonrar moças de família. Até que ele tenta seduzir a Madame de Tourvel, que é uma raridade – uma mulher casada feliz! Apaixonar-se será sua ruína (dos dois). Enquanto isso, a Marquesa quer se vingar de um amante que a abandonou e que vai casar-se com uma adolescente virgem, Cecile de Volanges. Seu plano, claro, é que Cecile não seja mais virgem até a noite de núpcias, o que fará Paris inteira rir do carinha. Outros tempos, espero.Não sei se você notou que a trama toda gira em torno de sexo, o que a faz evidentemente interessantíssima. Em 1988, Stephen Frears (já famoso por Minha Adorável Lavanderia, que basicamente revelou Daniel Day Lewis; depois o diretor faria o ótimo Os Imorais, e – tem quem goste – Alta Fidelidade) percebeu o potencial da peça e escalou três grandes atores pros papéis principais: Glenn Close como a Marquesa, John Malkovich como o Visconde, e Michelle Pfeiffer como a Madame. E ele também chamou dois jovens pra papéis menores: Uma Thurman, então com 17 anos, como Cecile, e Keanu Reeves como seu professor de música, Danceny. O filme fez grande sucesso, foi indicado a sete Oscars, ganhou três, e é realmente um deslumbre. Tem muita coisa que eu adoro nessa versão. Tipo: é inventivo que o filme comece com todo o ritual de meia dúzia de criados vestindo, maquiando e penteando os nobres, e termine com a Glenn Close tirando a maquiagem sozinha, enquanto uma lágrima escorre pelo seu rosto. Mas sempre fico pensando que não deve existir muita paixão e espontaneidade numa relação sexual que demanda pelo menos uns dez minutos pro casal conseguir ficar sem roupa (pô, parte do vestido da Glenn é costurado com ela dentro!). Uma das minhas frases favoritas em LP é quando, logo no início, o Visconde tenta falar pra Marquesa que na realidade foi um alívio que a amante dele o deixou. E a Marquesa responde, na lata: “Não, não foi”. E o Visconde fica quieto, porque sabe que não foi um alívio, e sabe que a Marquesa sabe. Aliás, as melhores cenas de LP são todas entre Glenn e John. Eles têm uma ótima química juntos, meio como se um completasse as falas do outro, quase como Clarice e Hannibal o Canibal em Silêncio dos Inocentes. O Visconde diz pra Marquesa, “Achava que 'traição' fosse a sua palavra favorita”. E ela responde: “Não, não... 'Crueldade'. Sempre acho que ela tem um tom mais nobre”. Na pele da Glenn Close, e com os diálogos do Hampton, a Marquesa de LP tem uma alta carga feminista. Acompanhe essa troca de palavras entre o Visconde e a Marquesa (minha tradução): Ele: “Eu frequentemente me pergunto como você conseguiu se inventar”. Ela: “Bem, eu não tive escolha, tive? Sou mulher. Mulheres são obrigadas a serem muito mais cheias de recursos que homens. Vocês podem arruinar nossa reputação e nossas vidas com algumas poucas palavras bem escolhidas. Portanto, é claro que eu tive de inventar não apenas eu mesma, mas também formas de fuga que ninguém pensou antes. E eu fui bem-sucedida porque sempre soube que nasci pra dominar o seu sexo e vingar o meu”.Ele: “Sim, mas o que te perguntei foi como”.Ela: “Quando debutei na sociedade eu tinha 15 anos. Eu já sabia que o papel a que fui condenada - o de ficar quieta e fazer o que era mandada - me dava a oportunidade perfeita de ouvir e observar. Não o que as pessoas me diziam, o que naturalmente não tinha o menor interesse, mas o que elas tentavam esconder. Eu praticava indiferença. Aprendi a parecer feliz enquanto por baixo da mesa eu enfiava um garfo na palma da mão. Eu me tornei uma virtuosa do fingimento. Não era prazer que eu buscava, era conhecimento. Consultei os mais rígidos moralistas para aprender como me apresentar, filósofos para descobrir o que pensar, e romancistas para ver do que eu podia me livrar, e no final, eu resumi tudo a um princípio maravilhosamente simples: vencer ou morrer”.Perfeito, não? No próximo post sobre a trilogia (vou chamar assim) falarei sobre o que não gosto de LP (o que inclui o Keanu, tadinho). E entrego o final. Assim dá tempo de você ver o filme até lá. Na realidade, os filmes. Os três.Esse menino com cara de tonto é o Keanu.
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