CRÍTICA: AZUL É A COR MAIS QUENTE / A liberdade é azul
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CRÍTICA: AZUL É A COR MAIS QUENTE / A liberdade é azul


Não posso falar de um Azul que a galera já me pede pra falar de outro. Não, minto, já haviam pedido antes pra escrever sobre Azul é a Cor Mais Quente (veja o trailer legendado). 
Fui ver sem saber nada, só que era um filme francês sobre um caso de amor lésbico. Não sabia que durava três longas horas. Longas não necessariamente por serem chatas, mas porque o diretor franco-tunisiano Abdellatif Kechiche não quer saber de cortar. Qualquer diálogo besta, qualquer interação, é esticada a proporções épicas. Só eu que achei que dava pra contar a mesma história em duas horas, sem perder nada?
A história acompanha alguns anos da vida de Adèle, uma linda jovem de 15 anos. Vemos parte das suas aulas, um protesto estudantil de que ela participa, suas fofocas com as amigas. Ela namora rapidamente um rapaz da sua escola, um pouquinho mais velho, mas não está satisfeita -- quer algo a mais, sem saber o que é. 
Um dia, ela vê na rua uma moça de cabelo azul, Emma, e é amor à primeira vista. Elas se reencontram num bar lésbico e começam um relacionamento, que dura alguns anos. Vemos Adèle completar 18 anos, tornar-se professora. Vemos a carreira artística de Emma deslanchar. 
Vemos só um pouquinho de homofobia. Os pais de Adèle pensam que Emma a está ajudando com Filosofia, nunca que elas são amantes. O pior é quando as amigas de Adèle, ainda no ensino médio, veem Emma e suspeitam que Adèle é lésbica. E ela não se identifica como lésbica, não quer rótulos, está no início de suas descobertas. 
As amigas não aceitam essas respostas inconclusivas e decretam que, já que Adèle é lésbica, ela obviamente estará a fim de todas elas, um perigo. Espero que os homofóbicos, vendo essa cena, percebam como são ridículos (ainda mais depois que uma parte surpreendentemente enorme da população francesa saiu às ruas para lutar contra os direitos homossexuais!).

Diz a lenda que o diretor Kechiche ficou tão obcecado com sua jovem estrela que trocou o título do filme, baseado numa história em quadrinhos de Julie Maroh, Azul é uma Cor Quente, para A Vida de Adèle
Adèle Exarchopoulos é o nome da atriz. E aí se iniciam as polêmicas: tanto ela como Léa Seydoux (que faz Emma, e que já tem uma carreira mais consolidada), quanto boa parte da equipe técnica, se rebelaram contra o diretor. Adèle contou que ele a filmava até indo ao banheiro, e disse que não pretende trabalhar com ele novamente. Depois que Azul ganhou a Palma de Ouro em Cannes, as coisas parecem ter se ajeitado.
Então passemos ao que faz o filme ser tão falado: uma longa cena de sexo (uns sete minutos) bastante explícita entre duas mulheres, o que não é nada comum no cinema mainstream. De modo geral, eu acho cenas de sexo desnecessárias quando elas interrompem a narrativa. Mas não é o caso aqui. 
Afinal, se vemos toda a paquera que Adèle e Emma têm no bar, se vemos Adèle e seus pais comerem um prato inteiro de macarrão, se vemos toda a conversa sem graça entre Adèle e o namoradinho no ônibus, é óbvio ululante que veremos a transa inteira. Não tá interrompendo nada mesmo! 
E aí, o que eu achei dessa longa cena? Muitas coisas.
No final do ano, não sei se você lembra, a atriz Evan Rachel Wood reclamou da censura do sistema classificatório americano, que exigiu que uma cena de sexo oral numa mulher fosse cortada. Wood disse, e eu concordo, que o cinema não lida bem com o prazer feminino. Isso num filme com homem até no título (Charlie Countryman), em que Wood é uma mera coadjuvante. Daí, quando o cinema mostra sete minutos de prazer feminino, como no caso de Azul, a gente também reclama?! (a propósito, Azul recebeu a classificação mais proibitiva nos EUA, NC-17). 
Existe também toda uma questão acerca da orientação sexual das atrizes. Quase sempre, quem interpreta gays e lésbicas no cinema são astros héteros (Heath Ledger, Michael Douglas, Matt Damon, Annette Bening, boa parte do elenco de The L Word). 
Assim como, na questão da identidade de gênero, nos raríssimos momentos em que pessoas trans são focadas no cinema, quem as interpreta são atrizes cis (e fazem um belo trabalho: Hilary Swank em Garotos Não Choram, Felicity Huffman em Transamérica). É por isso que Laverne Cox vem chamando tanto a atenção na série Orange is the New Black -- por ser a primeira trans a interpretar uma trans! 
Pode parecer irrelevante, mas não é. Não é porque, pra começo de conversa, há pouquíssimos papéis para homossexuais e trans, e quando há, esses vão para atores e atrizes héteros e cis. A gente pode pensar em Shakespeare. Quantos protagonistas negros o grande Shake colocou nas quase quarenta peças que escreveu? Um: Otelo. Durante séculos, o papel foi feito por atores brancos com maquiagem que lhes escurecesse a pele. Um dos maiores Otelos de todos os tempos é Laurence Olivier. Hoje em dia, aliás, nos últimos cinquenta anos, não é mais aceitável que atores brancos façam Otelo. Por quê? Porque há um monte de grandes atores negros que podem muito bem fazer esse papel. E porque é considerado racista o uso de blackface hoje em dia (exceto pro pessoal de Zorra Total). 
Há pouquíssimos astros e estrelas hollywoodianas que saíram do armário. O motivo pra isso é a homofobia: considera-se que assumir-se homossexual limita a carreira. É aquele negócio: um cara pode interpretar um canibal serial killer que vem do espaço, mas, depois de se assumir gay, muita gente não vai conseguir acreditar no cara beijando uma mulher! 
Mas então, as duas atrizes de Azul são héteros. E, pelo que elas contam, as filmagens para aqueles 7 minutos de sexo caliente que aparece na tela levaram dez dias pra filmar. Dez dias em que as pobres atrizes tiveram que ficar nuas diante de uma equipe (e filmar sexo definitivamente não é tão prazeroso quanto fazer sexo. Como disse Michael Douglas ironicamente, na ocasião de Instinto Selvagem: "é um trabalho duro, mas alguém tem que fazê-lo"). Todos os relatos de Azul indicam que houve muita improvisação, em todas as cenas. Daí você coloca um diretor homem e hétero filmando duas atrizes hétero nuas numa cama e grita "Ação!" Humm... digamos que seria mais realista se pelo menos a atriz que faz Emma fosse lésbica?
Certo, eu não entendo absolutamente nada de sexo lésbico. Portanto, achei bacana a sequência do sexo. Pelo menos os caras homofóbicos que vivem repetindo que "sem pênis, não há sexo" terão dor de cabeça pra explicar o que Adèle e Emma fazem durante aqueles 7 minutos ofegantes. Manicure? Pilates? Sei lá, parece sexo pra mim. Achei bom que uma plateia não entendida possa assistir sexo lésbico (embora algumas pessoas tenham relatado risadas desconfortáveis e silêncios sepulcrais do público). 
Aí foram perguntar pra quem sabe: lésbicas. Pediram que elas comentassem a cena de sexo de Azul. Elas pareceram não gostar muito (favor abstrair a lésbica que é extremamente desrespeitosa com seu gato). Uma delas disse que ficou óbvio que se trata de duas atrizes hétero tentando fazer sexo para a câmera ("É, nunca vimos isso antes"). 
Outra protestou contra a mudança de posição sexual a cada dez segundos: "Pareceu um comercial para um produto de cozinha, mostrando todas as coisas que o produto pode fazer". É, se a gente considerar que é a primeira relação lésbica de Adèle, esse conhecimento todo que ela demonstra em cena soa um pouco exagerado. 
Vamos torcer para que diretoras lésbicas recebam dinheiro para fazer filmes pro cinema mainstream (e diretoras héteros também: dos 19 filmes em competição em Cannes 2013, só um havia sido dirigido por uma mulher). E que, quando diretoras lésbicas finalmente consigam realizar filmes com bom orçamento, elas façam obras mais ousadas que, por exemplo, Minhas Mães e Meu Pai.

Li posts melhores do que este sobre o filme. Este, da Lettícia, fala sobre as polêmicas. Gostei muito deste também. E deste da Jussara. E este é o máximo. 




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