O início do filme narra a infância do personagem-título e é delicioso. Nele descobrimos que o único momento em que o pai de Amélie a tocava era para ouvir seu coração. Com a emoção, seu coração disparava, o que levou seu pai a concluir que ela sofria de problemas cardíacos. Vemos também a tragédia da morte de sua mãe e nuvens em formas de bichinhos. E ouvimos listas das coisas que as pessoas que vão pipocando na tela gostam e não gostam. É esta rápida montagem que dá o tom à comédia que não é bem comédia e ao drama que não é bem drama. Ou seja, é um filme sobre os detalhes do cotidiano. Quer um exemplo do que nossa heroína gosta? De colocar a mão nos sacos de grãos, de observar as pessoas no cinema e de ver nuances que ninguém mais nota, como uma mosca no meio de uma cena de amor. Aparece a mosca circulada, para que possamos notá-la. Ela não gosta de gente que dirige sem olhar para a estrada, tal e qual os motoristas nos filmes americanos. Corta para uma cena ilustrativa. E sabe que estranho? Funciona.
Amélie decifra seu fabuloso destino de ajudar o próximo ao descobrir uma caixinha com objetos de infância. Ela encontra o dono da caixinha, manda o anão de jardim do pai viajar (parece o tourist guy do World Trade Center, mas é anterior), serve de cupido para dois solitários, e se apaixona por um cara que gosta de colecionar fotos 3x4. Mas a seqüência mais comovente do filme ocorre quando ela ajuda um cego a atravessar a rua. Pensei que iria acontecer o básico – que, ao chegar ao outro lado, o velhinho reclamaria que não queria atravessar. Mas “Amélie” surpreende o cego e o espectador e promove um tour, descrevendo tudo que há à sua volta. Nesta hora, eu até chorei. Note o “até”; até parece que nunca choro no cinema. É uma das cenas mais bonitas homenageando a cegueira desde “Marcas do Destino” e “A Prova”. E por falar em “A Prova”, “Amélie” também celebra a fotografia. Sobre a Princesa Diana, constantemente citada, traz um olhar menos benevolente.
Quando li sobre o filme e as gracinhas do roteirista – o porquinho do abajur desanda a conversar com o cachorrinho do quadro; um dos retratados nas 3x4 tagarela com um personagem –, pensei: iiih, isso não vai dar certo. Mas não é que dá? Soa até natural numa película em que a protagonista dialoga direto com o espectador. Assim, o narrador conta que Amélie aprecia adivinhar quantos casais estão tendo orgasmo simultâneos num dado momento. Ela fita a câmera e diz: “Quinze”. E é nessas minúcias que ela nos ganha. A gente se identifica com aqueles tipos. Quem não tem um pouco de voyeur ou de hipocondríaco que atire a primeira pedra. Afinal, muita gente adora fazer ploc naquelas embalagens com bolinhas plásticas. “Amélie” não tem vergonha de ser um filme que nos faz sair mais leve da sessão. A alienação é atraente, e não há nada de errado nisso. De vez em quando.