CRÍTICA: PRECIOSA / A culpada é a mãe
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CRÍTICA: PRECIOSA / A culpada é a mãe


Vida difícil, mas não culpe o sistema.

Êêêêê, fui ver meu primeiro filme em Fortaleza! E foi logo num cinema dos bons, o Espaço Unibanco, que fica no belíssimo Dragão do Mar (dá vontade de virar correntista do banco só pra pagar meia entrada). E, claro, foi uma obra acima da média também. Mas, convenhamos, se tem uma época boa pra ver cinema de qualidade, essa hora é agora, antes do Oscar, quando os concorrentes chegam nos 8% dos municípios que têm sala de cinema no Brasil.
Bem, não considero Preciosa um grande filme, embora ele seja certamente diferente. Se já é incomum ver uma história com uma mulher como protagonista, o que dizer de uma mulher negra, pobre e gorda? Tramas desse tipo até existem no cinema americano independente, mas é raríssimo que ganhem repercussão, distribuição ampla, indicações ao Oscar, e desaguem no mainstream. Por isso, aproveitem.
Preciosa conta a vida de uma menina que vive no inferno. É aquela coisa: quem pensa que enfrenta problemas sérios deve ver o drama pra saber o que é vida difícil mesmo. A protagonista (Gabourey Sidibe, ótima) tem 16 anos, é semi-analfabeta, está grávida de seu segundo filho (ambos frutos de estupro do seu pai), e mora com a mãe, que é uma carrasca total. Nesse contexto, sua obesidade mórbida é o menor dos males. Mas, pra uma adolescente, com todos os sonhos teens de querer ser aceita, ser gorda é um enorme empecilho. Ainda que Preciosa esteja completamente à margem da sociedade, ela sofre influência dessa mesma sociedade que a rejeita. Mas tem os mesmos desejos, e segue os mesmos padrões de beleza. O filme já abre com uma narração em off onde a mocinha diz que gostaria de ter um namorado claro, não escuro. Ela se vê no espelho e, nas suas fantasias, se enxerga não só magra, mas também branca e loira. Ela sabe muito bem que sua cor não é considerada bonita. E ela sabe que, como mulher, seu maior mérito seria ser bonita.
Nas suas fantasias, ela se imagina em programas de TV, glamurosa, sendo aplaudida, com um namoradinho — enfim, sendo aceita. Essas partes me lembraram as fantasias da Ellen Burstyn no excelente Réquiem para um Sonho, em que ela literalmente vai à loucura tomando pílulas para emagrecer. Mas a vida de Ellen em Réquiem é um paraíso se comparada à de Preciosa. Em Réquiem, ela tem um filho viciado em drogas que lhe rouba a televisão. Ou seja, fichinha, ué. Em Preciosa, a protagonista tem uma mamãezinha querida pra ninguém botar defeito.
É Mo'nique quem interpreta essa vilã. E é uma das vilãs mais assustadoras dos últimos tempos (desde o Chigurh de Onde os Fracos Não Têm Vez, eu diria). Mo'nique é gorda (bem menos que Gabourey), e eu já vi um ou dois filmes gracinhas com ela que tentam melhorar a autoestima de garotas gordas. Num deles, Phat Girlz, um rapaz africano se apaixona por Mo'nique — afinal, o padrão de beleza no país dele (Nigéria? Nem lembro), segundo o filme, dá preferência às gordinhas. De toda forma, o que quero dizer é que Mo'nique não é uma desconhecida. Agora, com Preciosa, ela faz o contrário do que sempre fez. Seu personagem é detestável, rejeitado por todos (uma das últimas imagens é da assistente social se recusando a tocar no seu braço). Ela não tem uma única virtude. Bate na filha, a humilha, não trabalha, vive isolada, depende da rede social do governo. Há uma cena que não entendi, em que ela se masturba e grita para a filha ajudá-la, e fade out, a cena acaba. O que isso quer dizer? Que ela também abusa sexualmente da filha? Ela sabe que Preciosa foi estuprada pelo marido. E descarrega sua raiva na filha, não no marido.
A melhor interpretação do filme, pra mim, é a de Mo'nique. Ela tem uma intensidade incrível. Quando fala baixo, é aterrorizante, porque é meio que a fala de uma psicopata, prestes a explodir. Quando parte pra violência física, ela cresce na tela, fica maior que suas vítimas. Eu fiquei com medo dela. Além do mais, ela é falsa, enganadora, manipuladora. Uma monstra.
E é aí que o filme se complica, politicamente falando. Ele dá a entender que o maior problema de uma adolscente pobre, sem perspectivas na vida, é... a sua mãe. Enquanto Mo'nique domina a história, o pai de Preciosa nunca aparece por inteiro. Vemos só pedaços dele, em flashbacks. Difícil vê-lo como vilão da história, se nem ao menos podemos vê-lo. Mas é ele quem estupra sua filha. O filme joga toda a responsabilidade de suas ações na mãe. E, gente, sei que há mães terríveis, que abusam de seus filhos ou que sabem, e permitem, que seus maridos abusem deles. Mas são a minoria. Em geral, essas mulheres são também vítimas de seus maridos. Mas Preciosa não problematiza isso, não explica que estupros dentro de casa, pelo pai ou padrasto, são tão comuns. Ou que isso pode ser pior pra autoestima de uma menina do que a mãe chamá-la de gorda inútil.
O filme individualiza uma situação (a do abuso infantil) que é uma verdadeira praga, presente em tantos lares. E, pra piorar, ele dá a impressão de lutar pelo fim de um sistema de segurança social, né? Preciosa é um presentão pros reaças que defendem que pobre só sabe mamar nas tetas do governo. Aqueles que chamam bolsa família de bolsa esmola, sabe? E que creem que, se o governo retirasse o (pouco, minúsculo) auxílio que dá a essas pessoas que não têm nada, os problemas dessas pessoas automaticamente desapareceriam.
Esses dois mandamentos — mulheres são sempre suspeitas, quando não culpadas, e ninguém precisa de governo nenhum — são típicos dos conservadores, e eles ganham força em Preciosa. O que não me impediu de gostar do filme, chorar com ele, torcer para que a protagonista encontre sua voz. Mas, tirando a parte da defesa dos gays (o diretor, Lee Daniels, é gay), Preciosa parece feito sob encomenda pro atraso político. Sei que ele pode ser interpretado de outras formas. É que acabei de ler o fabuloso Backlash, de Susan Faludi (falarei dele em breve), e Preciosa soa como parte desse retrocesso, dessa luta contra as mulheres.

P.S.: Passei o filme todo achando que a Mariah Carey era a professora boazinha de Preciosa, não a assistente social boazinha. Ambas estão bem.
P.S.2: Gostei do carinha que faz o ajudante de enfermagem. Depois fiquei sabendo que é o Lenny Kravitz, famoso pra todo mundo, menos pra mim. Mas notem só como o filme critica as amigas de Preciosa por acharem que só mulher pode ser enfermeira. Como se as mulheres tivessem criado essa situação, ou esse preconceito...




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