DIZER QUE MULHER DEVE SE VALORIZAR É SUGERIR QUE ELA NÃO TEM VALOR
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DIZER QUE MULHER DEVE SE VALORIZAR É SUGERIR QUE ELA NÃO TEM VALOR


Num post sobre uma moça que foi estuprada após beber demais, a K. deixou alguns comentários bem intencionados, porém totalmente equivocados. A própria autora do post respondeu a K. Cora e Phillipe fizeram excelentes comentários, e K. até concordou com o Phillipe. Mas também houve, como sempre, algumas respostas mais atravessadas. K. sentiu-se mal, porque ela não quis ofender ninguém, e me enviou um email.
Publico aqui minha resposta pra ela:
De vez em quando, aparece um comentário que não é trollagem, não é agressivo, mas ainda assim é errado. E isso é muito difícil de medir, sabe? A intenção da pessoa. Por exemplo, sempre que publico algum post sobre aceitação do corpo, principalmente contra gordofobia, aparecem várias pessoas dizendo que a pessoa tem que emagrecer, porque senão vai ficar doente e morrer. Alguns chamam esses comentaristas de "concern trolls", ou seja, gente que finge estar preocupada conosco e aproveita pra trollar. Mas acho que é preciso considerar que, em muitos desses casos, a pessoa não é troll. Ela talvez realmente esteja preocupada com a sua saúde, e aí repete as abobrinhas do senso comum (só gordo fica doente e morre), esquecendo-se que o gordo sabe que está gordo e que já ouviu 32,678 vezes essa mesma ladainha.
Então, no seu comentário pra moça que foi estuprada após ter bebido: sei que vc quis ser uma mãe, quis dar conselhos e tal. Mas é o que ouvimos o tempo todo. E, pra gente mudar a sociedade, tem que mudar o foco. Conselho não é pra quem é estuprada, é pra quem pode estuprar. Porque se dependesse só de conselho pra mulheres pra erradicar o estupro, então não teríamos mais estupros faz tempo. Todas nós já ouvimos esses conselhos: não entre no carro de um cara que vc não conhece direito, não beba demais, cuidado com a sua roupa, não ande sozinha na rua, etc etc etc. 
Esses conselhos -- bem intencionados, claro, mesmo que vários deles sirvam pra limitar a liberdade das mulheres -- fazem parte da nossa vida. Pensamos neles o tempo todo. E, pessoalmente, eu acho que ninguém, nem mulher nem homem, deve beber até cair, ou se drogar, ou perder os sentidos. E a gente sabe que pra mulher é muito mais perigoso fazer isso que pra homem. Eu recebo toda semana um relato de estupro de alguma mulher que bebeu demais. Toda semana. Isso quer dizer que tem muita mulher irresponsável? Pode até ser, mas beber não é crime. 
O que essa epidemia me diz é que tem muito cara achando que transar com alguém que não está em condições de consentir é algo aceitável. Que tem muito cara achando mesmo que c* de bêbada não tem dono, que isso não é estupro. E deve ter cara achando que foi estupro sim, mas a vadia mereceu, quem mandou beber demais? Aliás, quem mandou sair sem estar acompanhada por um homem? 
É algo que não consigo entender. Já que tem tanta gente que gosta de fazer analogia entre estupro e assalto, eu sempre penso no seguinte: se eu visse um completo estranho passar mal e desmaiar na minha frente, o que eu faria? Tentaria ajudá-lo, chamaria uma ambulância? Ou aproveitaria que ele não está consciente e roubaria sua carteira? Porque a gente só pode estar vivendo num mundo muito ruim mesmo se a resposta de tanta gente for "roubaria sua carteira pra ele aprender que não se deve desmaiar no meio da rua".
E isso que eu tô falando de um completo estranho! Agora, imagina se fosse um conhecido, um colega, um amigo, um parente? Como alguém pode pensar em se aproveitar de uma pessoa que conhece e que perdeu os sentidos?!
Deixa eu te contar um outro relato que recebi um dia desses. Uma moça viajou a trabalho, pela sua empresa. E, por falta de quartos, acabou sendo colocada pra dividir um quarto de hotel com um colega da mesma firma. Sabe, um sujeito com quem ela trabalha há tempos? Que ela vê todo dia? Bom, essa moça tem depressão, e por isso toma alguns remédios controlados que a derrubam na hora de dormir. Ela os tomou naquela noite. E, na manhã seguinte, naquele hotel, ela acordou sem calcinha, com dor na vagina, e sentindo-se toda pegajosa. E, como só tinha o colega dela no quarto, ela perguntou se ele tinha feito alguma coisa com ela. Ao que ele respondeu que sim: "Como você é liberal, pensei que não ia ligar". 
Como é que pode? A quantos anos de prisão deve se condenar um cidadão desses?
E aí, ela foi responsável pelo estupro que sofreu? Ela não devia ter depressão, não devia tomar remédios, não devia aceitar dividir o quarto com um colega de trabalho?
Como esse caso terrível se difere do de uma moça que está interessada num cara, está até flertando com ele, mas não quer transar ainda, aí ela bebe e o cara "transa com ela" inconsciente? Paquerar alguém não é a mesma coisa que consentir fazer sexo com essa pessoa. Aliás, é muito bizarro transar com alguém que não corresponde, que nem sabe o que está acontecendo.
Tem uma frase chave na resposta que a R. te deu: "Eu não fui criada pra dizer não". Como isso é verdade! Nós mulheres somos criadas para sermos educadinhas, servis, delicadas, atenciosas, pra agradar, principalmente os homens. Isso tudo está associado à feminilidade. Ao mesmo tempo que somos ensinadas a temer, somos condicionadas a não lutar. Susan Brownmiller já dizia isso na década de 70: nossa sociedade cria estupradores, e cria vítimas. Cria cenários de estupro. E esses cenários não são uma festa em que uma mulher bebeu demais. 
O cenário a que a ele se refere é essa condição de que homens são treinados pra medir sua masculinidade pelo número de parceiras sexuais que têm. Eles têm sempre que insistir, não podem aceitar um não como resposta, e tem que transar com qualquer coisa que se mexa (se não transar, é gay. E obviamente não foi o feminismo que inventou isso, foi o machismo). 
Um tipo de slutshaming
Ao mesmo tempo, mulheres também são medidas pelo número de parceiros que têm -- só que quanto menos, melhor. E é treinada pra não dizer não, porque isso não é cortês. Mulher se impor é visto como algo agressivo, rebelde, masculino. Então vc junta essas situações e temos a receita perfeita pra uma cultura de estupro. E melhor ainda: uma cultura em que a mulher nem vai denunciar seu estupro, porque ela vai se sentir culpada. Muito mais culpada do que se sente o estuprador!
O maior problema no seu comentário, a meu ver, foi este pedaço: "Entende menina? Nada justifica o que ele fez, NADA. Mas, na boa, eu acho que vc traiu o principio básico de ser mulher: vc nao se valorizou, voce nao viu o qt era mais que ele, vc simplesmente foi. Faltou amor proprio em vc". 
A gente pode discorrer um monte sobre o que seria esse "princípio básico de ser mulher". É se valorizar? Sei que isso de "mulher deve se valorizar" faz parte do senso comum. A gente ouve isso diariamente. Então eu te peço: risque essas palavras do seu vocabulário. Pense no que elas significam. Primeiro, elas implicam que mulheres não têm valor. Se já tivessem, não precisariam fazer esse esforço pra se valorizar. Segundo, essa expressão sempre tem conotação sexual. Ninguém diz pra uma mulher "você tem que se valorizar" referindo-se a um mestrado que ela devia fazer pra subir na carreira, né? Se valorizar é simplesmente não fazer sexo. 
Mas por quê? Mulher não gosta de sexo? Não pode gostar? Quem disse? Pode gostar, mas não pode fazer? O tempo de se casar virgem já passou, graças. Virgindade não é mais uma exigência. Homens não podem mais pedir anulação do casamento ao descobrir que a mulher não é virgem. Mas essa história de "mulher deve se valorizar" persiste. 
Por que uma mulher "que se valoriza" não é considerada aquela que tem pleno controle da sua vida sexual, dos seus desejos, da sua liberdade, e inclusive da sua responsabilidade (que é se precaver pra não engravidar nem pegar doenças -- e isso é responsabilidade dos dois)?
Você parece ser uma ótima pessoa, e entendo perfeitamente que você não falou por mal, K. Agora é só refletir sobre tudo isso e tentar aprender.




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