ODEIO ÁLCOOL, MAS NÃO É ELE QUE CAUSA ESTUPROS
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ODEIO ÁLCOOL, MAS NÃO É ELE QUE CAUSA ESTUPROS


Semana passada publiquei um guest post sofrido da S., universitária que relatou o abuso que sofreu enquanto estava desacordada: um amigo de infância, também bêbado, passou a mão nela na frente de todos na festa. 
Nos comentários, a maioria foi solidária, desejou a S. força para superar e coragem para prosseguir com a denúncia. Mas, como é de praxe em relatos como esse (não só aqui no blog como na sociedade de modo geral), não faltou o povo do "a culpa não é sua, mas no fundo é sua". Que é o velho e conhecido "culpar a vítima". A Anna respondeu isso tão bem que reproduzo aqui seu comentário:

"Em todo post assim vem uma galera com isso de 'Não beba, o mundo está cheio de monstros. Mas não, eu não estou culpando a vítima, imagina! Só me preocupo com vcs, infelizmente nós mulheres não podemos vacilar blá blá blá'.
Vcs acham mesmo que ninguém nunca ouviu isso? E vcs acham mesmo que só mulheres (e meninas!) desacordadas em festas sofrem esse abuso? 
Porque não se pode nem pegar no sono no ônibus. Em vez de vir mil aqui dizer pra ela parar de beber, se tratar e sair do alcoolismo (?), por que não comentam sobre o menino que a abusou, dos amigos q viram tudo, dos responsáveis da festa q nada fizeram, dos amigos q agora passam a mão na cabeça do estuprador pra ELE superar isso? Porque se vcs leram o texto todo e o que lhes chocou foi ela beber demais, mostra que há um problema.
Esses argumentos são super típicos, se forem em qualquer post sobre estupro aqui do blog não vai faltar comentário do tipo 'por que vc não fez X, Y e Z? Não quero te culpar, mas vc não pode dar mole hoje em dia!'
Esse post não é sobre alcoolismo, glamourização da bebida etc. Vcs podem pedir pra Lola escrever algo sobre isso, em vez de vir aqui desviar o assunto."

Como a Anna lembrou, aqui no blog já postei relatos de moças que foram abusadas em viagens de ônibus. Seu crime? Ter que fazer viagens de ônibus à noite, entre uma cidade e outra, às vezes de um estado a outro. Elas não tinham bebido. Estavam dormindo, assim como faz a maioria das pessoas que viaja de ônibus à noite. E aí, a culpa foi delas? Se elas não precisassem viajar, o abuso não teria acontecido? Se elas não tivessem dormido? Mas o problema claramente não é alguém viajar ou dormir ou beber. É sentir-se no direito de bolinar uma mulher desacordada. Esse deveria ser o foco. 
Também já contei sobre uma mulher que, numa viagem a trabalho, precisou dividir o quarto com um colega, porque o hotel estava lotado. Como ela tinha depressão, dependia de remédios pesados pra conseguir dormir. E, na manhã seguinte, acordou dolorida e grudenta. O colega -- vale ressaltar, alguém que convivia com ela todos os dias há vários anos -- havia "transado" com ela durante a noite. Diante da perplexidade da moça, alegou: "Achei que você não iria ligar, porque é tão liberal". E aí, como ela poderia ter evitado o estupro? Dormindo em quartos separados? Largando o emprego? Não tendo depressão? Não dormindo?
O amigo que abusou de S. na festa, os desconhecidos que bolinaram as passageiras no ônibus, o colega que achou tudo bem fazer sexo com a colega que toma remédio para a depressão -- esses caras não se conhecem. Não são do mesmo lugar, não exercem as mesmas atividades. Em comum, eles se acharam no direito de se aproveitar de um corpo que não é deles, que não lhes pertence, num momento em que aquelas mulheres encontravam-se vulneráveis. Eles são psicopatas? São estupradores em série? São maníacos sexuais? Ou são apenas homens que foram ensinados que seu desejo vale muito mais que o consentimento de uma mulher? 
Repetindo a pergunta da S., "Que desgraça de construção social profunda despertou da maneira mais violenta naquele momento?"
Porque é essa a questão: o que leva homens "de confiança" a estuprar? O fim dessa epidemia universal chamada estupro tem que passar por essa resposta, por esse enfrentamento a um modelo de masculinidade falido. 
Mulheres se cobrem com burcas em certos países do globo e ainda assim são estupradas.
Ou seja, a pergunta-clichê "o que você estava vestindo?" vai por água abaixo. Meninas são estupradas por parentes e conhecidos que juram que elas "estavam pedindo". Moças são abusadas enquanto dormem ou em festas. O que todas essas mulheres podem fazer para evitar serem estupradas? Parar de viver? Não há evidências suficientes mostrando que o problema não é o comportamento dessas moças, e sim o comportamento desses homens que estupraram?
Sobre bebida alcoólica, já expus aqui minha posição várias vezes: acho que ninguém deve beber até cair. Sou suspeita pra falar, porque só bebo água sem gás. Talvez por ter tido um problema serío de alcoolismo na família, talvez por crer que não preciso de ajuda pra me descontrair e ficar mais animada, ou talvez por simplesmente não gostar do sabor, nunca bebi nem experimentei qualquer tipo de droga. Se isso é ser careta, eu sou. Se não cedi às pressões de amigxs quando eu era adolescente, não é agora que vou ceder. 
Não recomendo que ninguém beba, muito menos que fique bêbadx, até porque as estatísticas são as piores possíveis: o álcool provoca quase 10% das mortes de jovens no mundo, e pelo menos 2,3 milhões de pessoas no planeta morrem, todo ano, devido a problemas relacionados ao consumo de álcool. Beber e dirigir certamente é uma combinação explosiva (e muitas vezes fatal). E não resta dúvida que há inúmeros casos de mulheres que são estupradas enquanto estão inconscientes. Não creio que beber ou se embebedar seja empoderador de qualquer forma (muito pelo contrário), e não quero que ninguém se ponha em situação de risco.
Acontece que, pelo jeito, pruma mulher se colocar em situação de risco, basta ter nascido. Pode acreditar que os casos de estupro em geral são muito maiores e mais variados que esses causados por ou com quem bebe demais. Além do mais, o álcool não faz ninguém fazer o que não tinha predisposição para fazer. O álcool não causa estupro. O estuprador causa estupro.
Se eu estiver com amigos, espero poder confiar neles. Não canso de repetir esse exemplo: se alguém  desmaiar na rua, eu vou ajudar essa pessoa ou aproveitar que ela está desacordada pra roubar sua carteira? Agora imagine só se essa pessoa é minha amiga, ou conhecida, ou colega. Agora imagine que o caso é muito pior que roubar carteira. É estuprar uma pessoa inconsciente. Como culpar a vítima?
Mais tarde, uma leitora chamada Veronica deixou este comentário:
"Quando conheci o blog da Lola, passei a achar que feminismo trazia a mulher uma consciência, uma responsabilidade maior. Afinal, nenhuma feminista pode ser 'tapada'. Mas pelo jeito entendi tudo errado. Quer dizer que lutar pelos direitos femininos vai me isentar de ser responsável comigo? Pq eu só vejo gente 'feminista' com esse discurso de 'quero direito de beber até cair'. Só as mulheres 'machistas' que acham que beber até perder o controle pode trazer consequências ruins? 
S. foi estuprada pq estava vulnerável pelo abuso do álcool, e se ela tivesse atravessado uma rua e tivesse sido atropelada ? E se ela escorregasse e batesse a cabeça ? Só para citar um caso real , Marcelo Rubens Paiva (jornalista, escritor) ficou tetraplégico após mergulhar de cabeça (ele havia bebido, não soube avaliar o perigo). Uma mulher morreu queimada, estava bebendo e fumando, adormeceu e incendiou o colchão... Queria saber da Lola se posso ser feminista, lutar por uma sociedade mais justa e TAMBÉM achar que beber até perder o controle é um comportamento de risco."

Neste blog não confiscamos carteirinhas feministas, Vê, então pode achar o que quiser e ainda se dizer feminista. Mas olha só as comparações que você faz. Você compara acidentes causados por bebida com estupro. Estupro não é acidente!
Marcelo Rubens Paiva se acidentou sozinho (o que, aliás, é um caso bem comum, com ou sem bebida -- isso de mergulhar sem saber onde está mergulhando, e lesionar a coluna). 
A mulher que sem querer pôs fogo no colchão estava só. Vc está comparando esses casos com um crime (estupro), em que há uma outra pessoa presente. A S. não podia atravessar uma rua, porque estava desacordada pelo efeito do álcool. Se ela tivesse caído sozinha e batido a cabeça porque estava bêbada, bem provavelmente eu publicaria um post sobre os péssimos efeitos da bebida. Mas estamos falando dos péssimos efeitos do estupro.
Vamos fazer outras comparações: e se, na mesma festa, o amigo da S., em vez de estuprá-la, botasse fogo nela? Será que a gente ainda falaria "Ah, mas foi vc que se pôs num comportamento de risco, bebendo até cair"? E se, na mesma festa, o amigo tivesse jogado a S. pela janela, porque tinha uma fonte lá embaixo, e ele quis que ela mergulhasse, e S. tivesse ficado tetraplégica? Seria culpa dela também?
Um dos princípios mais básicos do feminismo é: não culpe a vítima. 




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