E a mae, joana.
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E a mae, joana.



broder, e essa força?

por aqui, tudo bem. posso começar a falar do tempo, ja que a senhora sempre pergunta se aqui ta frio ou quente. é verdade que o clima pode influenciar bastante nosso humor, mas ultimamente tenho me sentindo tao bem, que deixei de ir à janela checar o rumo dos ventos pra decidir se ponho um sorriso ou se o guardo no bolso. gostaria de explicar porque me sinto bem, mas pra sua decepçao, é sem motivo aparente, mais ligado às minhas drasticas mudanças de humor do que propriamente à um emprego novo. ou esse bem-estar seja talvez porque eu tenha me dado conta de que um emprego, ainda que novo, nao vai contar em nada à minha felicidade. talvez conte à minha conta. mas nao conto com isso. mas te conto que (parei) estou bem simplesmente porque, aqui, ja sofri demais. mas nao era um sofrimento sabido. eu soh soube que fui triste porque agora eu sorrio. ainda que sem motivo. desculpa. na verdade, tem um motivo. ou varios. mas nao sao aqueles motivos-clichês: estabilidade, labrador no jardim ou carro na garagem. e ja me adianto que nao ando feliz porque descobri que o grande segredo da felicidade é mudar de carreira do nada, trabalhar menos, se ocupar mais dos filhos, seguir seus sonhos ou começar a procurar beleza nas pequenas coisas da vida, como o caminhar de uma joaninha no nosso joelho. eu sempre soube que joaninhas eram indicadoras supremas de gente feliz. ou sensivel. joaninhas ja me fizeram muito feliz. a ultima, inclusive, me fez feliz ha umas três semanas, quando eu tava colhendo damasco la em larnage. o sentimento provocado nesta mulher de 28 anos, foi provavelmente o mesmo produzido em qualquer outra criança que vê uma joaninha pela primeira vez na vida. o mundo todo para de mexer. e aquela joaninha se torna imensa. e vai dançando desajeitada na nossa pele. e vai deixando, em cada passo, um carinho. e, de repente, o nosso coraçao começa a queimar e o sorriso começa a sorrir e, sei la porque, a desgraçada da joaninha voa no apice do momento. e a realidade volta, os carros buzinam, você levanta o rosto e o mundo ta ali de novo, como era antes da joaninha decidir dançar. decidi parar de procurar felicidade em coisas tao efêmeras, mas nao pretendo afastar a possibilidade. 

mas mainha, nao tou escrevendo pra falar de joaninhas, ainda que eu saiba que a senhora poderia me escutar falar durante horas sobre um assunto tao banal. (...) desculpa, joaninha. tao "banal". eu tou te escrevendo pra dizer que eu ja fiz a cirurgia do coraçao e, por favor, maezinha, nao se sinta traida. eu nao vi nenhum interesse em amargurar esse seu coraçao falando da data ainda que ele seja bem saudavel (apesar dele estar batendo ao dobro do tempo que o meu). nao disse nada porque eu sabia que, enquanto meu coraçao estivesse sendo consertado, o seu estaria paralisado. mas pra te acalmar: tou bem. de novo. os detalhes eu conto em casa, ao telefone, porque ainda tou no hospital. mas tou aqui de boa, sem absolutamente nenhum cateter ou soro ou sonda ou dor, onde as recomendaçoes se limitam basicamente a "nao dar bunda canastica" ou "nao dançar a macarena bêbada". mas de qualquer jeito, eu nao faço mais isso – nao danço a macarena. sigo à risca as recomendaçoes do médico e as enfermeiras estao derretidas por mim. acho que ainda nao sou a queridinha de todas elas, mas pretendo me transformar deixando (comida e) um bilhetinho agradecido em cima da cama antes de ir embora. sou absolutamente a favor de bilhetinhos. dentro do bolso do amigo, na carteira do amado, na cama - ainda que seja na de um hospital e pra uma mulher. mas quando falei de traiçao, nao me referi propriamente ao fato de nao ter revelado a data. falo na verdade, da escolha de ter feito a cirurgia aqui, tao longe da senhora. mas segui meu coraçaozinho fudido e apostei que teria aqui o suporte necessario (nao o melhor) pra realizar a cirurgia. 

quando acordei sozinha na sala de reanimaçao, me senti infinitamente sozinha. eu tive um sonho quando era criança, provavelmente o sonho mais bizarro que ja tive na vida (eu sei, sonho bizarro = pleonasmo, mas). eu, numa piscina profunda, me deparo com uma vaca amarrada em cima de uma cama, as quatro patas atadas em cada ponta dela. e nesse momento do sonho, nao havia barulho. eu sentia uma angustia enorme de ver aquele bicho que, ainda que vivo, nao se debatia debaixo da agua. eu queria procurar a superficie, mas nao me mexia. ficava ali, vendo a porra da vaca turva e aquele silêncio ensurdecedor, aquela solidão azul. quando acordei sozinha na sala de reanimaçao, eu tava presa à cama, anestesiada. tinha pelo menos um tubo saindo de cada buraco do meu corpo, dois que saiam grotescamente da lateral do meu peito direito diretamente pra uma caixa de plastico e outras tantas agulhas presas às maos e aos braços. e naquele silêncio, soh me limitei a seguir o medico com os olhos. e toda vez que eu me sinto sozinha, eu lembro desse sonho, desse vazio. e nessa hora, eu me senti realmente sozinha, solidoes que soh uma doença é capaz de proporcionar. mas dessa vez, eu decidi me mexer. e fui la pra superficie tomar fôlego, deixei o silêncio, a agua e a vaca pra la. enfrentei quatro dias de claustrofobia em cima de uma cama porque nao podia me mexer e o que me enclausurava era meu proprio corpo. mas olha. tou aqui escrevendo esse email. tirei os tubos. guardei os buracos.

e sabe, no primeiro dia no quarto, recebi tanta gente, que fiquei de saco cheio (nada pessoal, pessoal): nao podia falar direito. e eles trouxeram porcos de pelucia, chocolates, paes, cookies, livros, bombons e até vieram, num dia de tempestade, me ajudar na correçao final da minha monografia (inclusive, a entreguei hoje). eles se revezaram pra corrigir os erros de ortografia e fizeram uma tabela com os dias de visita, pra que eu nao passasse nenhum dia sozinha no hospital. nico me abraçou tao forte quando voltou de viagem que eu senti o coraçao dele bater contra meu peito. e priscilla, quando se despediu hoje, pegou meu rosto com as duas maos, deu um beijo bem longo e, quando pensou em largar meu rosto, voltou a beijar a bochecha e rimos juntas como um belo casal de lesbica que nao somos. e eu soh pude ter vivido essas coisas, porque eu apostei que aqui daria tudo certo. era garantido que com a senhora eu nao passaria nenhuma privaçao, mas eu decidi arriscar. e ganhei. é por isso que eu tenho me preocupado menos com o tempo. essas pessoas sao minhas joaninhas de felicidades não-efêmeras. pode sorrir.


com amor, da filha querida


luciana

(é bom especificar, ela tem duas).




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