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GUEST POST: "É TÃO LIBERTADOR TIRAR ESSA CULPA DE MIM"
A F. me enviou este email: "Estou escrevendo por dois grandes motivos: te agradecer e compartilhar. A questão é que eu fui estuprada, e passei anos me culpando, sentindo vergonha e todas aquelas coisas que você sabe bem como funcionam. Até que uma amiga me apresentou o seu blog, e através dele e do feminismo, eu finalmente pude compreender. Isso é tão importante para mim que eu não sei como colocar em palavras. Eu só deixo o meu imenso e mais sincero agradecimento!" Ela também enviou o seu relato:
Eu tenho me esforçado muito para me perdoar e perdoar ao outro, e achei dentro de mim (depois de um processo longo e muito introspectivo) uma forma de encontrar algum equilíbrio. Eu acredito que compartilhando vou me sentir cada vez mais forte. Não é fácil, eu sofro, mas no final sinto que estou fazendo a coisa certa. Eu fui estuprada. Já faz algum tempo, mas dentro de mim foi ontem.
Eu tinha 6 ou 7 anos, não tenho certeza (agora tenho 23). Meu primo tinha uns 10. Ele morava numa fazenda, e nós vivíamos por lá. Apesar de não ter lembranças claras, lembro que ele sempre brincava de pegar na minha bunda ou coisas assim. Um dia nós estávamos lá, eu, ele, meu irmão (que tinha uns 4 ou 5 anos) e o irmão dele (uns 13, 14). Nossos pais estavam no salão de festas que tinha na fazenda, e nós na casa deles.
Meu primo me contou que tinha assistido a um vídeo do meu tio, e que tinha visto um cara enfiar o "pau na bunda" (nunca, nunca vou me esquecer dessas palavras) de uma moça e queria fazer igual. Eu não entendi o que ele disse, pra ser bem sincera. E disse isso pra ele. Ele pegou uma lanterna e um lápis, tirou aquela parte que abrimos para colocar pilha da lanterna e enfiou o lápis no buraco, para que eu entendesse.
Eu disse que não queria.
Eu não lembro onde meu irmão e meu outro primo estavam, mas não era com a gente. Estávamos sozinhos na sala, sozinhos na casa. Provavelmente eles estavam brincando com os cachorros lá fora. Meu primo insistiu pra que fizéssemos aquilo, e de novo eu disse que não. Eu não entendia a dimensão daquilo como hoje, mas me lembro que sabia que eu não queria. Eu tinha certeza que não queria.
Ele falou alguma coisa do tipo "Vamos apostar uma corrida, e se você perder eu vou fazer isso com você". Saiu correndo pela casa enquanto eu fiquei paralisada, e voltou dizendo que ele tinha vencido. Eu não estava entendendo nada, era criança demais. Ele veio pra perto de mim com olhos de fome... Eu não vou me esquecer disso. Abaixou a minha calça e calcinha. Até então eu não tinha me mexido.
Falei de novo que não queria e comecei a chorar, mas ele me jogou no chão, de bruços. Eu lembro que meu coração estava muito disparado, que eu fiquei fitando a porta, imaginando se alguém apareceria por ali. Eu não gritei, não queria que ele ficasse bravo. Mas lembro que pedi "não" inúmeras vezes, que disse que não queria fazer aquilo, que chorei. Lembro da mão dele fazendo pressão no meu pescoço enquanto eu estava de bruços. Lembro de ter visto o pênis dele, e depois lembro que tentei levantar. Eu sei que ele era uma criança, mas era muito maior e mais forte que eu.
Eu não consegui me livrar do aperto da sua mão, e ele me estuprou. Doeu. Ardeu. Eu chorei, pedi pra ele parar. Talvez até tenha gritado, ou chegado perto disso, não sei direito. Depois ele saiu de cima de mim, e eu lembro que fiquei deitada no chão, paralisada. Ele levantou a calça e disse "Você não vai contar pra ninguém". Não foi um pedido, foi uma ordem.
Ele levantou a minha calça e calcinha, e eu finalmente despreguei do chão. Fui ao banheiro, e tinha sangue e o que agora eu sei que era esperma.
Lembro que fiquei quieta, mais do que já era. Muito quieta. Eu queria ficar sempre longe dele, eu não queria mais sentir o cheiro dele perto de mim. Joguei a minha calcinha no lixo, porque não queria que minha mãe visse o sangue. Hoje eu me pergunto como tomei essa atitude sendo tão nova, e me pergunto se não foi ele que me instruiu a fazer isso. Pode ter sido. É provável que tenha sido.
Algum tempo depois (eu realmente não sei quanto tempo, mas foi no mesmo ano) ele foi em casa, ia dormir lá. Eu me lembro de duas passagens, uma de um dia em que estávamos comendo pão de queijo e eu estava gripada. Estávamos os quatro brincando de pega-pega, e eu fiquei pra trás porque estava com o nariz entupido e não conseguia correr direito. Não sei como, mas fomos parar no banheiro de visitas. E ele me estuprou de novo. Dessa vez eu não chorei, mas lembro que ele me bateu bastante. Vários tapas. Eu estava tentando me livrar dele, ele ficou muito bravo. Mas, no final, ele me estuprou de novo. Alguém bateu na porta, acho que a mãe dele. Perguntou o que estávamos fazendo, e ele respondeu que fazendo xixi. Ela pediu pra abrirmos a porta, ele se recompôs, fez com que eu fizesse o mesmo e abriu. Eu nem consegui olhar pra ela, disse que ia continuar brincando e saí correndo. Depois, na outra lembrança, ele estava em casa e disse que íamos brincar de piloto e aeromoça, e que eu tinha que sentar no colo dele. Provavelmente ele via essas coisas em filme pornô do meu tio. Não sei se um menino de uns 10 anos tem esse tipo de pensamentos.
Ele me colocou sentada no colo dele (ainda vestidos), mas eu consegui levantar e meu pai apareceu. Ele não chegou a ver nada, mas acho que ficou desconfiado, porque começou a me fazer perguntas. Um dia eu contei pro meu primo (irmão mais velho dele), e ele me disse que não devíamos mais fazer isso, brincar assim (no plural mesmo, como se fosse uma brincadeira entre crianças, como se o irmão dele não tivesse me forçado).
Meus pais estavam me fazendo perguntas, e um dia eu disse "o D. e eu brincamos de enfiar o pipi na bunda". Meus pais ficaram muito bravos, fizeram perguntas, mas eu não falei mais nada, só chorei. Lembro que escondi o rosto nas mãos, porque fiquei com muita vergonha. Eu não conseguia dizer que não queria aquilo. Simplesmente não conseguia. Lembro da minha mãe no telefone com a minha tia, de não sair de perto dos meus pais quando eles iam na casa da minha avó por medo que eles contassem pra ela e pro meu avô.
Nunca mais falamos sobre isso (eu e meus pais). E lembro do meu primo um dia indo atrás de mim na escola (estudávamos na mesma escola) e dizendo "por que você contou pra eles?" e eu ignorando e correndo.
Logo depois meus tios se separaram e ele e meu outro primo se mudaram pro exterior. Perdemos contato por muito tempo. Bloqueei isso da minha mente, simplesmente assim.
Quando eu tinha uns 15 anos, ele fez um comentário sobre minha bunda, alguma coisa de querer pegar. Eu senti um misto de emoções bizarro. Só olhei para ele e me afastei, mas esse sentimento continuou no meu peito. Até que um dia eu lembrei. E veio como uma enxurrada, e tudo mudou.
Ele era só uma criança, eu sei, mas ele me estuprou. Eu passei anos tentando me convencer que não foi estupro, mas foi. Eu não queria, ele me forçou, me estuprou. Eu pedi pra ele parar, eu implorei. Eu não queria.
E essa, uma palavra que eu nem conseguia dizer, está sendo repetida várias vezes de propósito. Agora eu sei o que foi, sei o que ele fez. Não vou mais mentir para mim mesma.
Eu não sei o que sinto em relação a ele. Finjo que nada aconteceu quando nos vemos. É como se ele fosse duas pessoas, o cara do passado que fez aquilo comigo, e esse de hoje. Minha dificuldade em aceitar o que aconteceu era muito por isso, creio eu. Por ele ser tão novo na época, por ser meu primo, por agir hoje como se nada tivesse acontecido. Não sei. Também não quero pensar que meus pais não fizeram tudo que podiam, que agiram como se fosse uma brincadeira de crianças... E não foi só isso, uma brincadeira de crianças. Eu sei o que foi. Ele sabe o que foi. Eu era bem criança, mas quando penso no que aconteceu não parece que eu era. É um tempo distorcido, faz muito tempo e ao mesmo tempo foi ontem. Já pensei muito na reação dos meus pais, muito mesmo. Eu entendo que eles não tiveram educação para entender a gravidade da coisa, é realmente isso. Já ouvi tantas frases tão machistas da boca dos meus pais que nem consigo enumerar.
Sabe, os tempos eram outros, a criação era outra. Hoje entendo a visão deles, e isso me ajudou muito a entender a atitude deles, e, por conta disso, perdoar. Ainda não sei se perdoei meu primo, mas estou trabalhando nisso porque sinto que preciso.
Eu sabia que ia me fazer bem falar disso. Parece que estou saindo de trás daquela cortina de vergonha, de culpa. Eu resolvi que não vou mais ficar quieta. Quando sentir necessidade de dividir isso com alguém, eu vou compartilhar.
Quanto ao meu primo... eu não sei a que conclusão chegar, mas algumas lembranças ficam na minha mente. Eu me lembro dele sorrindo pra mim do outro lado da sala, depois do que aconteceu. Eu tento procurar inocência nos olhos dele, mas não consigo. Parece que ele sabia o que estava fazendo. Com 7 anos eu fiquei sabendo o que era penetração, e uma criança tão nova só sabe que tem órgãos sexuais, não exatamente como eles funcionam. E sempre, desde o dia seguinte em que o primeiro estupro aconteceu, eu senti vergonha, me senti culpada junto com ele. Como se nós dois tivéssemos feito alguma coisa errada. Isso por conta da reação das pessoas a nossa volta, por conta da forma como a sociedade vê isso tudo.
É tão libertador tirar essa culpa de cima de mim, aceitar que eu não tive culpa e ponto.
Ele via filmes pornográficos, mas eu não sei se isso é o bastante pra aguçar a sexualidade a ponto dele ter feito isso. Quer dizer, ele podia ficar curioso com o que estava vendo, se tocar e tal, mas me forçar, me estuprar... Isso não. É incompreensível, e por mais que me doa pensar nisso, eu acho que tem alguma coisa dentro dele que o tornou assim. Dentro de todos os estupradores. Não acho que seja só influência do meio, é isso somado a alguma coisa que a pessoa já carrega dentro dela.
Eu me pergunto o tipo de homem que ele se tornou, se esses episódios se repetiram ao longo da sua vida. Ele parece ter se tornado um bom homem, mas isso não quer dizer nada, as aparências não querem dizer nada. Ele pode ter se arrependido do que fez comigo, ou não. Tento compreender, mas no fundo não sei se realmente quero. Uma coisa eu sei, tenho que perdoar. Porque além da dor do que aconteceu, fica esse ódio escaldante no peito, e isso destrói.
Eu estou me esforçando muito nesse sentido, em tentar encaixar o homem de agora com o menino de ontem e de alguma forma perdoar. Sinto que preciso disso. Obrigada por ler, por estar aí. Obrigada pelo seu blog, obrigada por entender. Seu blog é incrível. Não tenho outro adjetivo. Meu Deus, eu nunca me senti tão compreendida, tão bem. Isso me fez muito bem, mais uma vez eu agradeço! Você mudou a minha vida para muito melhor.
Meus comentários: Querida F., quando comecei a ler seu relato, só pensei: não tenho certeza se pornografia é benéfica para adultos, mas tenho certeza que não é para crianças. Crianças não devem ficar expostas à pornografia. Não tem nada a ver com moralismo. Pornografia simplesmente não pode servir como educação sexual. E a gente sabe que acaba servindo. Meninos aprendem sobre sexo vendo pornografia. Mas aí eu li o resto e concordo contigo: não foi só a pornografia que fez ele te estuprar. Tinha algo mais ali, algo perigoso na personalidade dele. Você acha que te faria bem conversar com ele sobre isso, um dia? Entendo que brincadeiras sexuais entre crianças sejam comuns e saudáveis. É frequente primos descobrirem o corpo juntos. Quantxs de nós já não brincamos de médico, de troca, de "eu te mostro o meu, você me mostra o seu"? Não há nada de errado nisso -- entre crianças, claro. Mas imagino que até um menino de dez anos entenda que uma criança chorando, gritando, pedindo "não", não está querendo. E que se ele continua, aquilo é péssimo.
Ele pode não saber o que é estupro (será que não sabe?), mas ele tem noção de que está "forçando sexo". Porque não é possível que você, com 7 anos, já tinha apreendido tanta coisa (a obedecer, a guardar segredo, a se culpar), e ele, com 10, fosse uma folha em branco. Ele sabia. Não estou defendendo algum tipo de punição legal para uma criança de 10 anos. Se eu fosse mãe do seu primo, e descobrisse, tentaria conversar com ele, levaria pra terapia. Se eu fosse sua mãe quando você tinha 7 anos, também tentaria conversar contigo, claro, e provavelmente te afastaria do convívio com ele. Não é fácil. Não sei como os pais devem agir numa situação dessas. Por isso, acho que você faz bem em perdoá-los.
Queria ouvir a opinião dxs psicólogxs. Já recebi vários relatos de meninas que, quando crianças, também se sentiram abusadas por primos, irmãos, amigos, apenas um pouquinho mais velhos. Ainda que essas leitoras não tenham identificado aquilo como estupro na época, foi traumático, deixou marcas. E, nas vezes que recorreram à terapia justamente para tentar superar esses traumas, ouviram que aquilo tinha sido apenas brincadeira inocente de criança. Longe de mim culpar psicólogxs, que tanto respeito. Só queria entender. Sei que é um assunto espinhoso, que toda vez que se fala de sexualidade infantil algum idiota grita "Pedofilia!", como se estivéssemos falando de sexo entre adultos e crianças. Mas, esquecendo esses bolsonaros da vida, acho interessante discutir nuances. E há muitas neste tema.
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