GUEST POST: CENÁRIO DE HORROR SE O ESTATUTO DO NASCITURO FOR APROVADO
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GUEST POST: CENÁRIO DE HORROR SE O ESTATUTO DO NASCITURO FOR APROVADO


Como eu já disse algumas vezes, caso o Estatuto do Nascituro passe, um embrião ou um feto terá mais direitos do que a mulher nascida, adulta, de quem ele é dependente. 
Uma das coisas mais mirabolantes que podem acontecer é a mulher abortar espontaneamente e ser investigada e criminalizada por isso. Abortos espontâneos ocorrem direto: entre 25% e 30% de todas as gestações "não vingam". Mesmo que você ache que não conhece uma mulher que abortou propositadamente (difícil, pois uma em cada cinco brasileiras já abortou), todo mundo conhece alguém que já sofreu um aborto espontâneo. 
Com o Estatuto do Nascituro, uma mulher que sofra um aborto espontâneo seria investigada por homicídio. Ela teria que provar que não cometeu um aborto. Pense em você, ou na sua mãe, irmã, namorada, esposa, filha, amiga, passando por isso. Não é cenário de ficção científica ou de história de terror. 
É bem isso que já está acontecendo em países que proíbem o aborto em todas as circunstâncias. E vai acontecer se o Estatuto for aprovado no Brasil, pode acreditar. 
A N. me enviou este relato que exemplifica bem a ameaça que corremos.

Trabalho com serviço diplomático e moro num país africano. Aqui é um país islâmico. Em geral, não há aplicação da sharia. Ando de vestido curto, vou à praia de biquíni etc. 
Sou casada.
E engravidei.
Veja bem, não foi planejado, mas nem por isso foi indesejado. Foi um pouco antes do que queríamos. Em breve nos mudaremos pra um país mais "civilizado", com mais atendimento de saúde, e já pretendíamos começar a tentar a partir de então. Aqui, pra evitar, usamos pílula e camisinha. Sempre. Mas a camisinha furou. E a pílula, pelo visto, falhou. 
Bom, era um pouco de se esperar, porque a parte de alimentação/água aqui não é 100% e eu tenho uns problemas estomacais com alguma frequência. Quando a camisinha furou, lembramos que eu tomo a pílula e, bom, deixamos pro acaso. Aqui não haveria a possibilidade de comprar pílula do dia seguinte. E, como eu disse, não é como se fosse uma coisa indesejada.
Enfim, faz pouco tempo, estava no trabalho normalmente, quando senti uma cólica forte. Muito forte. E um certo sangramento fora do comum -- eu não estava menstruada! Fui correndo ao médico com meu marido. Fui a uma clínica particular que costuma atender a maioria dos estrangeiros. Chegando lá, a notícia: estava sofrendo um aborto espontâneo. Primeiro bateu um pouco de incredulidade. Meu marido levou uns minutos pra lembrar da tal camisinha furada há algumas semanas (três? quatro? Sinceramente, não lembramos!). O médico perguntou se o aborto tinha sido proposital. Não, não tinha. Eu nem sabia que estava grávida!
Depois de devidamente medicada, voltei pra casa. Me sentindo péssima. Não pretendia engravidar agora, mas como eu disse, não seria indesejado. Ainda um pouco em choque, tirei o dia seguinte de folga. No fim do dia, recebo uma ligação do trabalho. Recebi uma intimação para comparecer perante a polícia. OI?!
Olha só, aqui a lei é no esquema do estatuto do nascituro. QUALQUER aborto é, a princípio, culpa da mulher. E ela pode ser presa por isso. O médico teve que informar a ocorrência de um aborto às autoridades, ou ele estaria encarando a possibilidade de prisão. 
Eu tenho sorte. Tenho imunidade penal. Meu chefe mandou a resposta que eu não iria à polícia me manifestar e pronto. Não vai dar em nada. Pra mim. Porque eu tenho imunidade. Porque eu tenho dinheiro e, na pior das hipóteses, poderia simplesmente sair do país. O Brasil me levaria pra outro lugar e pronto. E as mulheres daqui?
Uma amiga minha, local, quando soube comentou que se eu tivesse ligado pra ela, ela teria me indicado uma certa pessoa que não contaria às autoridades. Mas eu nem sabia o que estava acontecendo! Sério mesmo que seria esperado que eu procurasse um açougueiro qualquer porque sofri um aborto espontâneo? Que, sem qualquer coisa que eu tenha feito ou deixado de fazer, aconteceu comigo algo que acontece em quase um terço das gestações, que é o aborto espontâneo? Eu não queria esconder nada das autoridades porque, na minha cabeça, não fiz nada de errado!
Meu caso está resolvido. O ministério foi envolvido e eu estou "livre" de qualquer acusação. Quase que como um favor pra mim. Além disso, estou numa posição SUPER privilegiada aqui. Tenho um chefe fantástico e um marido maravilhoso, que me apoiaram em tudo -- meu chefe chegou a mobilizar um avião pra me tirar daqui de emergência, se a coisa prosperasse! Mas e todas as outras? E, caramba, se isso continuar no Brasil? Antes eu já dizia que quem considera aborto assassinato, deveria considerar abortos espontâneos homicídio culposo. Aparentemente, a coisa está evoluindo pra isso!
Não consigo parar de pensar: e as mulheres daqui? E, mais ainda, e as mulheres do Brasil, caso o tal estatuto passe? Tive uns dias péssimos por conta de toda a situação, que só foram piorados pela ameaça e polícia, processo, prisão. E eu sabia que nada aconteceria comigo. Já imaginou no Brasil? A mulher já está fragilizada por conta de um processo doloroso em seu organismo, um processo que ela poderia ou não querer que acontecesse, mas que é doloroso de qualquer forma, fisicamente, pra não dizer psicologicamente. E vai ser ameaçada com prisão? Processo? Multas? Penas? Ficha suja?
Eu sou e sempre fui a favor da descriminalização do aborto, embora eu mesma ache que nunca faria um propositalmente. Não por motivos religiosos. Eu, EU, sempre quis ter filhos. À época que iniciei minha vida sexual, já sabia disso. E sabia que, caso engravidasse, seria a situação de não planejado, mas provavelmente desejado. Mas o fato de que EU não ache que passaria por um aborto proposital, não significa que outra mulher, em outra situação, não possa optar por isso. E eu defendo o direito dela de ter o aborto, caso seja o que ELA quer.
E agora, estamos correndo o risco de até nos casos de abortos espontâneos a mulher ter que demonstrar que não teve culpa? Além de abortos espontâneos serem muito comuns, há outros fatores. E se ela bebeu? E se tomou um remédio que pode ter efeito abortivo, e não saber? E se ela, sei lá, foi  a um parque de diversões, andou numa montanha russa, e abortou sem querer (sem sequer saber que estava grávida!)? Ela vai ser culpada?
Não consigo entender. Juro, não consigo.
Enfim, nem comentei com minha família sobre o aborto. Sei que eles ficariam preocupados com minha saúde, com riscos de polícia, essas coisas. Só sabemos eu, meu marido, meu chefe, a tal amiga e, aparentemente, toda a organização jurídica/policial da cidade. Sairei daqui em breve. E sairei bem. E as mulheres que ficam? E as que ficarem no Brasil, caso o estatuto seja aprovado?




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