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GUEST POST: EU ENGRAVIDO, EU DECIDO
C., que tem hoje 25 anos, me enviou este relato comovente. Só queria lembrar o óbvio: que a experiência dela não é representativa da de todas as mulheres. Tem quem aborte sem sentir culpa. Por enquanto, posso publicar relatos como este sem ir presa. Mas, se o Estatuto do Nascituro for aprovado, veja só que belezura é o artigo 28, que ameaça com detenção de 6 meses a um ano quem fizer "apologia ao aborto". Alguma dúvida que os conservadores veem qualquer texto que não condene ferozmente o aborto como apologia ao aborto? Toda semana eu já recebo ameaças de que serei presa por defender a legalização do aborto. A aprovação do Estatuto será o sonho molhado de muitos reaças.Isso que eu nunca fiz um aborto, até porque nunca engravidei. Mas a C., assim como milhões de mulheres, teve uma experiência bem diferente.
Passei a quarta-feira com uma notícia entalada na garganta. No momento, gostaria, ou melhor, tenho a necessidade de falar sobre ela: o chamado Estatuto do nascituro. Quando li pela primeira vez sobre ele, não achei que era algo possível de ser aprovado, parecia-me mais invenção de algum fanático religioso, notícia sensacionalista mesmo. Queria acreditar que era um desses projetos que servem pra chamar a atenção da mídia, angariar votos nas próximas eleições, mas que jamais sairiam do papel. Pelo visto eu estava enganada. Nunca fui do tipo que briga, protesta, assume causas, pelo menos não publicamente. Isso tem mudado com o tempo, com as experiências e com o amadurecimento. Fiz um aborto quanto tinha 17 anos. Eu não pude escolher. A decisão não foi minha. Eu estava tão assustada, afinal, era meu primeiro namorado, estava me formando no terceiro colegial, tinha acabado de voltar da minha viagem de formatura. Gravidez era coisa de aula de Biologia, que só acontecia com a vizinha, com a prima distante, não comigo.
O sinal de positivo no teste de farmácia parecia cena de filme: por alguns segundos a gente se pergunta se está mesmo vivendo tudo aquilo. Estava. Foi tudo muito rápido. A mãe do meu namorado e a minha mãe decidiram tudo: no dia seguinte eu já estava tomando a primeira dose de remédios que até hoje não sei quais são. O pai do meu namorado era médico, chefe de um dos maiores hospitais da minha cidade, foi fácil conseguir os comprimidos. O problema é que eles não funcionaram. Tive um pequeno sangramento, alguma cólica, mas não abortei. Levaram-me então pra fazer uma ultrassonografia, com outro médico amigo da família. Assim que ele encostou o aparelho em mim disse que eu estava grávida. E eu só pensava, mas como? Eu não tomei os remédios? Não ia ficar tudo bem? Como vou contar pro meu pai? Com 17 anos todas as situações parecem situações sem saída.
O médico então pediu pra que eu tirasse a roupa, iria fazer um ultrassom transvaginal pra ver se o feto tinha batimentos cardíacos. Eu estava com seis semanas. De tudo, esse é o momento que ficou marcado em mim -- eu no banheiro do consultório, tirando a roupa e pensando: que não tenha batimentos cardíacos, que não tenha batimentos cardíacos. A decepção e o medo são maiores do que tudo. Desejar que aquilo dentro de mim estivesse morto é o pior sentimento do mundo.
Tomei uma segunda dose do remédio que me fez abortar. E nunca ninguém me perguntou se era aquilo mesmo que eu queria fazer. Eu sei, meu medo era tanto que ainda que me perguntassem eu teria dito que sim, que eu queria abortar, não podia ter um filho com 17 anos. Quando um Estatuto como esse é aprovado, eu me sinto mais uma vez como se não tivesse direito de escolha, como se meu corpo e minhas decisões não me pertencessem. Sinto-me julgada, um monstro que desejou a morte de outro ser. Mas eu não sou assim.
Seria andar em círculos dizer que o Estado é laico e que a descriminalização do aborto é questão de saúde pública. Tanta gente já disse isso e de modo muito melhor. Eu só queria que as pessoas conseguissem entender que jamais um aborto será algo agradável: carregaremos conosco a cicatriz. Eu ainda me vejo desejando não ouvir o coração bater, e ainda dói. Tenho medo de nunca conseguir ser mãe, de não ter a capacidade de um amor tão grande, já que fui tão covarde na primeira vez.
Palavras como covardia, culpa, morte ficam gravadas em nós, como estigmas de uma sociedade ainda tão presa a dogmas religiosos. Se esse deus deu aos homens o livre arbítrio, por que então as pessoas que usam esse mesmo deus como argumento querem tirar esse direito de mim? Acredito que é preciso libertar a discussão sobre o aborto, livrá-la de clichês tão ultrapassados. Somos tantas, e tantas de nós ainda morrem por não terem acesso a um procedimento seguro.
Não deixarei. Não deixemos.
O Estatuto do Nascituro fere o nosso direito de escolha. Ele fechará a discussão sobre o aborto, discussão esta tão importante. Minha gravidez é em primeira pessoa: eu engravido. A decisão sobre ter ou não o filho jamais deve ser tomada em terceira pessoa: a mulher não abortará. Não! Se o corpo é meu, se as dores sou eu que sinto, se as cicatrizes sou eu que carrego, então sou eu que devo decidir. Eu não pude escolher, mas quero lutar pelo direito à escolha de tantas outras mulheres como eu.
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