GUEST POST: ESTRIAS SÃO MARCAS DE GUERRA
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GUEST POST: ESTRIAS SÃO MARCAS DE GUERRA


Quando a Iara me enviou um email perguntando se podia escrever um guest post sobre estrias, me dei conta que nunca publiquei um texto com esse tema.
Pra falar a verdade, acho que nunca me preocupei muito com isso (e nem com celulite) porque são marcas que eu não vejo (ficam mais no bumbum e na parte de trás das pernas, não é? E, não sei quanto a vocês, mas eu não olho tanto pra minha bunda). 
Sei lá, nem estrias nem celulite são um problema pra mim. Eu me incomodo mais com algumas veias mais visíveis (mais verdes) nos braços e seios. Estrias eu acho até bonitinhas, parecem listras. Em outras espécies elas são padrão de beleza.
Mas sei que estria é um assunto que mexe muito com as mulheres, e por isso fiquei feliz ao receber o texto da Iara. Deixe-me apresentá-la: Iara de Dupont é atriz e autora do blog Síndrome do Mundo Moderno. 

Cresci em um ambiente machista e misógino. Mesmo assim diziam que eu era uma garota de sorte, porque meus pais tinham educação superior e eu jamais conheci a violência física ou sexual na minha casa. Eram essas duas violências que me garantiram que as mulheres sofrem; nunca me disseram nada sobre violência verbal. E apenas nos últimos tempos venho percebendo as enormes feridas em mim, consequências dessas agressões.
Eu já nasci gordinha e essa foi minha sina. Antes de chegar aos doze anos eu já tinha 1,72 m, e pelo excesso de peso, pelo rápido crescimento e pela genética (minha mãe é magra e cheia de estrias), meu corpo se encheu de estrias, aquelas marcas que aparecem quando a segunda camada de pele se rasga.
Nunca gostei, mas não dei importância. Algumas amigas me perguntavam o que eram essas ''cicatrizes'', mas eu nunca me incomodei. 
E foi assim durante minha adolescência. 
Quando cheguei aos dezoito anos me apaixonei por um rapaz mais velho que estudava medicina. Começamos a namorar e um dia ele foi a minha casa e acabamos tendo relações. Era um dia claro, o sol entrava pela manhã e eu estava deitada na cama quando ele  se aproximou e disse: "Você tem que me prometer uma coisa, jamais na vida, jamais, fique nua na frente de um homem, porque tuas estrias são horríveis e eu fiz um esforço enorme para não broxar!"
Não consegui responder nem me mexer, ele se levantou e foi embora. Fiquei  pensando que ele deveria ter razão. Ele estava no último ano de medicina e, se achou minhas estrias horríveis depois de tudo o que viu em um hospital, então eu deveria ser um monstro mesmo.
No dia seguinte ele me ligou e disse que estava terminando o namoro porque eu morava longe e tinha coisas no meu corpo que ele não curtia. Antes de desligar me desejou boa sorte.
O que antes não me incomodava virou um assunto urgente: procurei tratamentos e cremes. Consegui amenizar, mas as estrias ainda estão aqui.
Já passei dos trinta e considerava o episódio encerrado, mas a vida deu um giro e me vi diante de outra situação. Voltei a me apaixonar loucamente, e não consigo ficar nua na frente dele num dia de sol. Os meus namoros anteriores tiveram o mesmo padrão, sexo no escuro e com lençóis. Era pegar ou largar, eu não negociava essa parte. A maioria aceitou.
A diferença entre o atual e os passados é que eu estou mais apaixonada, e pela primeira vez me sinto mal em não ficar nua na frente dele. Ele diz que não se incomoda, mas fica magoado porque acredita que ''não confio nele''. Uma vez numa discussão ele me disse que não achava estrias broxantes, o que achava broxante era minha insegurança e o fato de eu nunca ter superado aquele episódio.
Conheci uma garota que me disse que não tinha estrias, ela se dizia um ''caderno com linhas para que seu homem escrevesse a história que tivesse vontade''. Achei tão poético que escrevi sobre isso no meu blog e mencionei por cima o que tanto me traumatizava.
De noite, quando fui ver minha caixa de emails, fiquei surpresa com a quantidade. Eram todos sobre o mesmo assunto: mulheres que têm estrias e já escutaram coisas horríveis dos seus parceiros. Uma me contou que seu namorado a chama de Frankenstein pelas cicatrizes, outra é chamada de colcha de retalhos, peixe-paulistinha, e assim por diante. 
Comecei a responder e logo elas me contaram mais detalhes: os namorados eram ótimos, só falavam isso de brincadeira, não faziam por mal, eram rapazes educados, simpáticos e gentis, mas não viam maldade nenhuma em brincar com os "defeitos" físicos das namoradas.
Venho me perguntando nos últimos dias, isso não conta como violência? Dizer que a namorada nua se parece com Frankenstein não é agressão verbal? Se alguém tivesse me explicado na época que o dito pelo meu namorado era uma agressão verbal, talvez eu tivesse lidado com tudo isso de maneira diferente.
Perguntei a um amigo  sobre comentários inapropriados que os homens fazem e ele lavou as mãos, me disse que os homens também estão debaixo desse massacre da mídia, e que, de tanto verem peles perfeitas, acham estranho quando encontram uma ''zebra'', uma mulher toda riscada, cheia de estrias.
Perguntei a vários homens se estrias incomodam. Todos disseram que não reparam durante um ''sexo casual'', mas se for a namorada, então diriam a ela para ''se cuidar um pouco''.
Fiquei com a sensação de que tudo está ligado. É a sensação de que o corpo feminino é de domínio público, então por que não fazer piada na intimidade ou ressaltar os defeitos? 
"Parei de me preocupar tanto com as
estrias nos meus quadris quando meu
marido as chamou de listras de tigre"
E por que ninguém fala sobre esses comentários aparentemente inofensivos que saem da boca dos amados e vão destruindo a autoestima da mulher? Eu passei quase vinte anos tendo uma vida sexual precária e limitada, cheia de complexos, de medo, de reservas, porque um único homem tinha me dito que eu era ''horrível nua''. Isso não é a mesma coisa que levar um tapa?
Sei que para muitas pessoas meu trauma é uma coisa simples, boba, mas a alma humana é indecifrável, a gente não tem como saber o que vai nos machucar.
E nos últimos dias eu diria que meu trauma é secundário, o que vem me atormentando é perceber que o corpo feminino é vigiado, criticado e condenado o tempo inteiro. Parece que nem na cama estamos livres de tanto julgamento.
Eu achava que meu problema eram apenas as estrias. Só depois de analisar com calma percebi que é a maneira como o mundo enxerga e persegue a mulher. Sempre achei que estrias eram marcas de uma guerra minha contra o excesso de peso. Só hoje percebo que a minha guerra nunca foi contra meu corpo -- foi contra o machismo. Parece que essa batalha está longe de terminar.
Seu corpo não está arruinado; você é um tigre que mereceu suas listras
Cartão feito para rebater a mensagem acima: "Tigres não ganham/merecem listras, nascem com elas. Você não é um tigre. Essas são estrias. Seu corpo ESTÁ arruinado". Vamos nos concentrar na última frase: o que leva alguém a julgar e condenar um corpo desse jeito? Por que a opinião dele importaria? O que é um corpo arruinado? Isso quer dizer que o cara não tem interesse sexual por você? Então comemore: desde quando você se sentiria atraída por um palerma que se acha especial por te lembrar que "ei, você não é um tigre"?





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