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GUEST POST: NÃO QUEIRAM MEDIR O QUANTO SOU MULHER
Como esta semana estamos falando muito em Visibilidade Trans, publico outro guest post sobre o tema, com um enfoque bem diferente.
Este foi escrito por Hailey, que, assim como Daniela, também é uma ativista. Hailey é mulher trans*, tradutora em SP, e editora do blog Transfeminismo. Creio que esse relato sincero e corajoso da Hailey pode fazer inclusive com que mulheres cis (ou seja, não trans) reflitam sobre a ditadura do que é "ser mulher" (e ser homem, evidentemente). Que sirva de exemplo para mostrar como o transfeminismo pode ser útil para qualquer feminista.
Gostaria de relatar minha experiência positiva com o feminismo, e posteriormente com o transfeminismo.Há mais ou menos seis anos, iniciei o que muitas pessoas trans* [entenda o porquê do asterisco usado por algumas ativistas] chamam de transição, ou seja, passei a usar roupas e acessórios considerados femininos, deixei meu cabelo crescer, comecei a fazer as unhas e me depilar – comecei a fazer tudo o que é socialmente considerado feminino. De certa forma, nessa época eu achava que o “sacrifício” de ter que me arrumar todos os dias era o preço que eu deveria pagar por “querer ser mulher”. Usar saltos e sapatos desconfortáveis, menores, inclusive, que meu pé (eu calçava 40, mas comprava 39 por falta de opção), deixando-o cheio de calos; gastar um belo tempo e dinheiro (que eu não tinha) com cosméticos e produtos caros, maquiagem, cremes, perfumes, etc. Somente alguns anos depois conheci o feminismo, e lentamente percebi o quanto essa cobrança me fazia mal. Mas no caso de nós, mulheres trans*, as coisas não são tão simples. Além da cobrança machista do ideal feminino, há outra cobrança. Para sermos “verdadeiramente” mulheres, devemos sacrificar todos os nossos “hábitos” masculinos. Caso contrário, seremos consideradas falsas, não transexuais o suficiente. Essa é a baliza que os profissionais da saúde utilizam para medir quem é mais ou menos transexual.Não preciso dizer o quanto é ridículo, senão inútil, tentar medir transexualidade. Gênero é algo fluido e complexo, e obviamente não tem como ser medido sem cair em estereótipos (machistas).Sinto que levei (e ainda levo) uma vida dupla. No consultório, tenho que mentir: dizer que sou heterossexual (quando sou bi); repetir a narrativa tradicional encontrada nos manuais (pseudo)científicos (como o discurso do “sempre me senti mulher”); mostrar “feminilidade” etc. Os critérios que esses ditos profissionais utilizam são os mais machistas possíveis: A mulher trans* de verdade é a mulher da década de 50: usa salto e maquiagem, roupas femininas, fala delicadamente e seu sonho é ter um marido macho para poder lhe fazer o jantar. E não estou exagerando. Se as mulheres cisgêneras (não trans*) conquistaram, digamos, em partes, a recusa dessa imagem, nós mulheres trans* ainda estamos presas a um ideal ultramachista de mulher que, se não nos encaixarmos, teremos nossas identidades automaticamente invalidadas, nosso acesso à saúde negado, e nossa alteração do prenome e/ou sexo nos documentos também negados. Nossa existência está constantemente por um fio caso fizermos os gestos errados, caso digamos as palavras erradas, ou se contarmos alguma experiência que fuja minimamente do tradicional. É claro que existem exceções, mas esses têm sido os relatos de pessoas trans* ao longo de seus atendimentos nos hospitais das clínicas pelo Brasil (a socióloga Berenice Bento fez um amplo trabalho de campo nos HCs, o que resultou em bela pesquisa).Após um tempo no feminismo, comecei a ler o que ativistas trans* dos EUA chamam de transfeminismo: um tipo de feminismo aplicado às questões trans*. Não consigo expressar o quanto me ajudou! Com o transfeminismo aprendi a amar meu corpo, inclusive meu pênis (e perdi o medo/disforia de utilizar o termo pênis para se referir ao meu genital. Embora eu pessoalmente não tenha problemas em designar meu genital como pênis, não o considero “masculino”, e vale ressaltar aqui que muitas mulheres trans* não compartilham dessa visão e talvez se ofendam caso se insinue ou diga que elas têm um pênis. Como eu disse, as experiências são diversas e temos que respeitar sempre a experiência da pessoa trans* em questão); amar minha altura, meus pés grandes (para o padrão de mulher ideal), enfim, tudo o que socialmente é designado como “masculino” em mim e que corroboraria para me deslegitimar como mulher. Aprendi que não preciso depilar minhas pernas para ser mulher, não preciso me portar como mulher (seja lá como for isso); preciso somente ser eu e me identificar como mulher. A categoria de mulher independe de (meus) genitais (e consequentemente de quaisquer cirurgias), pois eu sou apenas um tipo diferente de mulher -- assim como existem mulheres altas e baixas, gordas e magras, com seios maiores ou menores, enfim, com várias morfologias -- minha morfologia é somente uma a mais dentro do espectro que é ser mulher. Sem a cobrança pela imagem da mulher perfeita, pude me livrar de vários desconfortos com meu corpo. Claro, não são todas as pessoas trans* que conseguem isso. Muitas irão fazer várias cirurgias, e essas não devem ser criticadas. Eu creio que cada um tem a capacidade para decidir como se sente melhor, se deseja ou não realizar alterações corporais. A minha experiência é apenas uma dentre as várias diferentes vivenciadas por pessoas trans*. Por isso, costumo dizer que não há uma narrativa legítima para ser trans* -- existem narrativaS.Por fim, gostaria de reiterar o caráter fluido da transexualidade. Não há receita de bolo. Todxs somos diferentes. Encontraremos, certamente, as pessoas trans* mais alinhadas com a cisgeneridade (estrutura que designa quem é homem/mulher “de verdade”; a estrutura que confere originalidade aos corpos percebidos como "naturais”), e encontraremos aquelas que divergem da norma, assim como existem homens e mulheres cis que são muito diferentes do ideal machista de gênero (ainda bem!). Sendo cis ou trans*, pagaremos o preço do desvio. Mas vamos seguir lutando para subverter as categorias rígidas de gênero.
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