GUEST POST: SE EU FOSSE PRESO, PREFERIRIA IR A UMA PRISÃO FEMININA
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GUEST POST: SE EU FOSSE PRESO, PREFERIRIA IR A UMA PRISÃO FEMININA


H., de 28 anos, me enviou seu texto instigante sobre o caso Verônica.

Caso Verônica já ganhou
manchetes internacionais
Antes de mais nada, gostaria de dizer que o seu foi o texto mais honesto — e, na minha opinião, correto — a respeito do que aconteceu. Acompanhei o caso desde que saíram as primeiras imagens, mas não "tomei" nenhum lado porque... bom, internet é um jogo perigoso de telefone sem fio, e prefiro formar minhas ideias a respeito depois de ver todos os fatos. Por fim, foi melhor, já que muita coisa foi distorcida, de todos os lados, a respeito tanto do crime que Verônica cometeu, quanto o crime que cometeram contra ela. A única coisa que eu discordo do que você falou é que Verônica deveria ir para uma prisão feminina.
Eu sei, eu sei, opinião perigosa, mas tenho um motivo muito pessoal para pensar assim: sou homem trans [uma pessoa que foi designada mulher ao nascer e depois fez a transição para homem], e jamais, em nenhum momento, gostaria de ser colocado numa prisão masculina.  
Complicado, né? Vi algumas pessoas levantando a questão em seus comentários, inclusive indagando se algum homem trans poderia opinar a respeito, e, pois bem, aqui estou. Me colocando em uma situação hipotética onde eu, se cometesse um crime passível de cadeia, jamais me daria ao luxo de escolher um presídio que combine com minha identidade de gênero. E isso por um medo bem simples (que acredito que aterroriza qualquer pessoa que nasceu com uma vagina), e esse motivo é estupro.
A moral é que não tem hormônio e cirurgia que mude minha condição. As cirurgias de transição de mulher --> homem estão anos luz atrás das de homem --> mulher, e mesmo que eu mutilasse a carne do meu braço para criar um pênis não-funcional (ou aumentasse o clitóris para um tamanho pífio), eu jamais teria como esconder por muito tempo de companheiros de cela que eu nasci mulher. E não apenas por questão de corpo (a cirurgia de genital é algo que nunca passou pela minha cabeça, pois o resultado me assusta muito mais do que me tenta), mas por criação mesmo. 
Nada que eu fizer na minha vida adulta vai mudar o fato de que eu nasci e fui criado como mulher até o inicio da vida adulta, pelo simples motivo de que não tinha como ninguém saber a respeito da minha identidade de gênero antes de mim. Não me perguntaram se eu me identificava com o gênero feminino quando nasci, não me perguntaram se eu me identificava com o gênero feminino quando fui para a pré-escola ou para o ensino médio. Eu fui criado como menina, e como ninguém ao meu redor era telepata, as marcas da socialização feminina estão nas minhas costas até hoje.
No geral, falar a respeito de socialização feminina/ socialização masculina é um tabu muito grande dentro do transfeminismo, e nunca me senti à vontade de falar alguma coisa a respeito disso em público por medo de perseguição. Homens trans são muito silenciados e invisíveis em qualquer vertente do feminismo e da comunidade LGBT, especialmente porque nos é negado nosso sofrimento em relação à misoginia. Falam que admitir que homens trans já passaram/ainda passam por misoginia é diminuir nossa condição masculina, mas admitir que eu sofri e ainda sofro misoginia é algo que nunca me ofendeu, ao contrário. 
Minha história de vida não contém a narrativa clássica da transexualidade, e pela maior parte da minha vida, tive uma apresentação extremamente feminina. Minha família, no geral, é bem aberta, mas são todos humildes, e com uma visão bem clássica do que é ser homem e do que é ser mulher, e foi num ambiente muito tradicional que fui criado. Nasci com uma vagina, e isso me fez ter uma infância e adolescência similar à de muitas mulheres cisgêneras brasileiras. 
Desde que comecei a falar, fui mandado a abaixar o tom, me abaixar, me encolher, diminuir meu tamanho e prezar a delicadeza. Noiei com peso pois me diziam que só poderia ser bonit"a" se fosse magr"a", e me foi privado o acesso a muitas coisas que eu tive interesse mas não eram tipicamente femininas. Meu raciocínio lógico é mais fraco pois meu interesse pela matemática foi tolhido quando ainda estava no ensino fundamental (pois "meninas são naturalmente mais fracas em exatas", dizem por aí), meu tom de voz carrega a pressão de abaixar e afinar a voz, minha linguagem corporal ainda tem resquícios dos comandos de delicadeza. 
Cada fibra do meu ser carrega minha história de criação feminina, e não tem corte de cabelo, hormônio ou cirurgia que mude isso. Isso não me machuca nem me magoa: eu abraço meu passado como abraço meu presente, e justamente por isso a ideia de ser a única pessoa com uma vagina em um ambiente lotado me assusta tanto quanto qualquer mulher. Eu seguro as chaves de casa entre os dedos quando passo num beco escuro, eu corro do ponto de ônibus até a entrada do meu apartamento quando volto do trabalho à noite. Esse medo sempre existiu e esse medo persiste pois eu não sou inocente. Sei que não vivo em uma utopia, e sei a condição em que estaria numa prisão masculina.
Nessa situação hipotética onde eu cometesse um crime e fosse para uma cadeia masculina, não demoraria muito para descobrirem meus genitais. Banheiros coletivos, celas coletivas, chuveiros coletivos... e não é só o corpo. Como falei, minha voz e minha linguagem corporal ainda carregam o peso da socialização feminina, e não é algo que eu ache que jamais vai passar, por mais visivelmente masculino que eu seja. 
Muita coisa a respeito da minha vida e da minha história delata minha condição de homem transexual, e em um mundo onde mulheres masculinas (lésbicas ou não) sofrem estupro corretivo todos os dias, é ingenuidade pensar que os homens do presídio me veriam como qualquer coisa além de uma mulher, portadora de uma vagina. Minha identidade de gênero já seria tolhida logo de cara, sequer seria minha escolha. Nessa circunstância, preferiria largar minha identidade de gênero e ser visto como lésbica masculina em uma distopia da minha própria vida em uma cadeia feminina do que ser saco de pancada e vítima de estupro coletivo numa cadeia masculina. 
Alguém poderia argumentar que uma travesti sofreria o mesmo numa prisão masculina, mas não tenho como saber pois não sou travesti. Talvez isso abra uma discussão para onde todos nós, transexuais, deveríamos ser mandados em caso de crime, não sei. 
[Perguntei ao H. o que ele, como homem trans, teria a propor, pois me parece errado e segregacionista ter celas apenas para pessoas trans. Seria esta a única saída para pessoas trans não serem violentadas, espancadas e mortas numa cadeia? Ele respondeu:]
Honestamente, eu não sei. Não acho que nenhum homem trans, transicionado ou não, estaria a salvo numa prisão masculina, da mesma forma que uma mulher trans completamente transicionada não estaria. Posso te dizer pessoalmente que, por toda minha história de vida, mesmo transicionado, eu jamais perderia o sentimento de horror à ideia de ser colocado numa prisão masculina, mas a questão como um todo é algo muito complicado pra mim, então acho que isso é algo que deveria ser discutido com um pouco mais de delicadeza.
No geral, as pessoas de dentro do ativismo pulam direto para a possibilidade de todo mundo ser colocado no espaço de seu gênero (e não sexo), e isso é meio que jogar os homens trans pra debaixo do trem, sabe? Por mais triste que eu ache essa possibilidade, por enquanto, acredito que o melhor é separar as cadeias por sexo biológico mesmo. Na minha ideia de uma separação assim, no mundo atual (onde as cirurgias de mulher para homem são muito mais precárias e experimentais que de homem para mulher), mulheres trans que passaram pela transição completa poderiam ir para presídios femininos, mas até a transição masculina melhorar, homens trans iriam para feminina também. Mas mesmo isso é difícil dizer. 
Não sei encontrar um meio termo: não é justo botar mulheres trans com homens cis, mas também não é justo botar algumas mulheres trans criminosas que já tenham agredido e estuprado mulheres, e possam botar em risco outras presas. Como qualquer preso/a, pessoas trans deveriam ter segurança, tanto de não sofrerem abusos, quanto de não serem humilhadas/os por sua condição, mas o resto também deve ser considerado.
Enfim, eu realmente não tenho uma opinião definitiva a respeito disso e estou disposto a ver outras propostas, mas pra minha própria vida, pra minha própria experiência, como falei acima, escolho a dignidade do meu corpo a pronomes.

Meus comentários: Entendo perfeitamente a sua preocupação, H. Se a vida numa prisão já não é fácil para ninguém, ela certamente é mais perigosa não só para pessoas trans, como também para pessoas cis que não sejam heterossexuais. Assim, muitos presos gays e lésbicas que podem esconder sua orientação sexual preferem fazê-lo, já que os riscos de, por exemplo, um homem gay ser estuprado e contrair Aids numa prisão não são nada desprezíveis.
Pesquisei um pouquinho e vi que, de modo geral, as pessoas são designadas às prisões de acordo com seu sexo biológico. Assim, um homem trans como você iria mesmo para uma prisão feminina (onde sem dúvida estaria mais seguro; porém, homens trans também podem ser abusados nessas prisões, geralmente por guardas), e uma mulher trans iria para uma prisão masculina. Em algumas prisões, travestis e mulheres trans são colocadas em celas junto a homossexuais afeminados. Há vários casos no mundo em que mulheres trans ganham na justiça o direito de serem transferidas para a prisão feminina. 
Outro problema para pessoas trans na cadeia é que muitas vezes há interrupção nos remédios. Mesmo as que recebiam tratamento hormonal antes da prisão, com prescrição médica, têm esses seus direitos desrespeitados. 
De maneira geral, a comunidade LGBT parece preferir prisões próprias para pessoas trans. Pelo menos quando uma das primeiras prisões desse tipo foi aberta, na Itália, em 2010, houve comemoração. A Itália tem cerca de 60 prisioneiros trans.
Ano passado houve um avanço, que ainda carece de implementação: o Estado de SP elaborou uma resolução que estabelece normas de tratamento pra travestis e transexuais no âmbito carcerário. Essa resolução permite que a pessoa trans tenha a autonomia para decidir o gênero que quer manter enquanto estiver na cadeia.
Eu mantenho que a travesti Verônica, depois de julgada e condenada, tenha de cumprir sua pena numa prisão feminina. Ela não pode correr risco nem por em risco a segurança de outros presxs, pois todos estão sob tutela do Estado e devem ser protegidxs. 
Porém, enquanto o risco que travestis e mulheres trans sofrem na prisão está bem documentado, há pouquíssimos indícios de que elas seriam uma ameaça à segurança das prisioneiras cis.
Não é uma questão simples, e não há unanimidade nem entre ativistas LGBT. Só sei que o feminismo que eu defendo não exclui pessoas trans.




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