GUEST POST: PÂNICO NA BAND TRANSFORMA EM PIADA A TRANSFOBIA DE CADA DIA
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GUEST POST: PÂNICO NA BAND TRANSFORMA EM PIADA A TRANSFOBIA DE CADA DIA


Participantes do programa se divertindo tanto quanto o público
Daniele Cavalcante, 34 anos, transgênero, feminista, escritora amadora e blogueira, me enviou este belo texto sobre um programa televisivo horrível que eu tinha certeza que já tinha acabado. 

No dia 14 de fevereiro a televisão brasileira ganhou um novo reality show e a sociedade ganhou uma nova maneira de praticar transfobia. O Pânico na Band colocou um de seus integrantes em uma ilha onde ele deve permanecer com 10 mulheres. Nove delas são transexuais e uma é cisgênero [identificada pela sociedade como mulher desde seu nascimento]. O objetivo de Guilherme Santana é descobrir quem é a mulher cis, ou, no linguajar da produção do programa e da sociedade transfóbica: quem é a “mulher de verdade”.
Todas essas pessoas passarão os dias em uma mansão e realizarão diversas atividades para que Guilherme encontre pistas no comportamento das meninas e elimine, uma a uma, as participantes que ele acredita -– novamente, como a produção gosta de dizer -– que “não são mulheres de verdade”.
O nome do programa já deixa em evidência o teor grotesco de seu conteúdo: “Beija Saco”. No final de cada episódio, Guilherme Santana deve eliminar uma das participantes em um ritual bizarro. Ele entrega sapatilhas para as mulheres que permanecerão na casa por mais uma rodada, e então, oferece uma chuteira para aquela que “não é mulher de verdade”.
Isso mesmo, uma chuteira.
É tão degradante que em algum momento do segundo episódio as câmeras filmaram as meninas comentando um tanto chocadas sobre isso. Fica a deixa de que elas provavelmente não sabiam que seria um programa tão humilhante. Pode parecer que elas estão amando tudo no programa, mas no segundo episódio é evidente a felicidade de uma das eliminadas ao deixar a casa. Uma delas ainda comenta: ela ficou feliz de sair.
Eu poderia copiar aqui inúmeras reações de pessoas nas redes sociais, mas seria uma perda de tempo desnecessária, pois todas se resumem a “muito engraçado”, “só tem traveco”, “nenhuma é mulher”, “o Gui só se fode”, “Ilha das cobras”. Entre a lista de trocadilhos óbvios e piadas prontas, alguns aproveitam para rir de pessoas que “pegam traveco” por engano nas baladas.
Alguns poderiam dizer: “não estamos rindo das garotas, estamos rindo do Guilherme Santana”. E é verdade, na maioria das vezes. As pessoas riem de homens que “são enganados” por “ciladas”. É a isso que somos reduzidas. Mesmo em um programa que nos trata pelo gênero feminino, o protagonista é o homem que precisa se esquivar das “trap”.
E ele se esquiva mesmo. Logo no primeiro episódio, quando os participantes são apresentados, Guilherme Santana vira o rosto ao receber um beijo no rosto das meninas, e faz nitidamente expressão de nojo. Durante todo o programa ele faz piadas sobre como ele quer evitá-las, mandá-las embora, ou agradecendo por não fazer o “tipo físico” de algumas delas. Quando uma se aproxima para abraçá-lo ou dar um beijo -– o objetivo delas é claramente “conquistá-lo” -- ele sequer disfarça sua repulsa: “Não, sai!”.
Entre as atividades do programa, as participantes tiveram que jogar futebol na praia -– claro, nada melhor do que atividades ditas “masculinas” pra descobrir quem é “homem” e quem não é, certo? Guilherme faz piadas o tempo todo, como dizer elas ficam caladas porque “a voz de manhã está mais grossa”, e observa como algumas são mais agressivas no esporte do que outras.
São estereótipos de gênero facilmente refutáveis, mas é doloroso só imaginar como a população brasileira assimila tudo isso. Uma verdadeira “aula de como descobrir uma cilada”. Prato cheio para transfóbicos. Se isso se tratasse apenas de rejeitar uma mulher na balada, já seria grave o suficiente. Mas o problema vai muito além.
Sabemos que o Brasil é o país que mais mata travestis no mundo, e o curioso é que também somos o país que mais consome pornografia com travestis e transexuais. No RedTube, a média de interesse nessa categoria é 89% maior que a média mundial. Essa é a estranha relação entre desejo e ódio que o homem brasileiro tem com mulheres trans*.
Mas será que o homem que deseja é o mesmo que mata? Ou são apenas números sem o devido recorte? Eu não posso responder essa pergunta, talvez ninguém possa porque os crimes de agressão e assassinato por transfobia não são punidos no Brasil. 
Nossa sociedade transfóbica e misógina já se acostumou a culpar a vítima: “Ah, ela deveria deixar claro para o homem que é travesti”. Essa é a versão para as trans do famoso “tava pedindo”.
Existem aqueles conhecidos como T-Lovers, os “amantes” de transexuais, que são nada mais do que homens que alimentam fetiche por corpos trans. 
Eles não são menos machistas e transfóbicos: é comum ouvir relatos de mulheres trans que foram assediadas por eles. Caso tenham uma relação, o homem deixa claro que ninguém pode ficar sabendo. “É nosso segredinho”. Pois ninguém quer virar motivo de piada, como o Guilherme Santana se tornou agora. Ninguém quer ser um “beija saco”. E não tenho dúvidas de que esse termo já está sendo usado nos bares e baladas para oprimir mulheres.
Quando escrevi pela primeira vez sobre esse programa no Medium, recebi um comentário de um homem cisgênero. Ele diz que, embora não aprove o programa devido ao teor desrespeitoso já tradicional do Pânico na Band, o reality não é transfóbico e mostra um “lado humanizado” das mulheres trans, ao contrário dos programas que apenas retratam a situação de risco e a prostituição em que a população trans* se encontra. Afinal, ele nunca teve a oportunidade de ver mulheres trans no dia a dia, brincando, fazendo piadas, enfim, sendo pessoas normais.
Bem, permitam-me transcrever parte minha resposta para as leitoras e leitores desse blog que talvez pensem da mesma forma.
É sempre interessante ver o comentário de um homem cis que nunca teve a oportunidade de presenciar como pessoas trans vivem o dia a dia (embora seja bem possível que já tenham visto e conversado, e até beijado algumas por aí sem saber).
Eu acho bem curioso que as pessoas cisgênero acreditem que pessoas trans* moram na Translândia, bem distantes, e suas realidades e modo de vida são diferentes de “pessoas normais”. É preciso um programa para mostrar como vivem, de onde vem, o que são, o que comem, o que falam. Surpreende-me um pouco que seja preciso um programa chamado “Beija Saco” para que pessoas cis aprendam, finalmente, que trans são pessoas como qualquer outra.
Mas é uma ofensa um homem cis querer ensinar a qualquer mulher trans o que é e o que não é transfóbico. Não é preciso xingar, humilhar descaradamente, bater ou tratar mal pra ser transfóbico.
O programa se torna transfóbico a partir do momento em que se usa o termo “mulher de verdade”.
O programa se torna transfóbico quando mostra Guilherme como “vítima de uma armação”.
O programa se torna transfóbico quando reproduz a transfobia da própria sociedade, que sente nojo de mulheres trans, incentiva uma busca ainda maior pela passabilidade e alimenta ainda mais a disforia de gênero, que causa mal-estar e pode até provocar suicídio.
O programa se torna transfóbico quando não há nenhum esforço em aproveitar a audiência para dar qualquer tipo de informação à população que ajude a diminuir a situação de risco das mulheres que eles próprios estão explorando (lembre-se de que elas sairão do programa e terão que encarar a sociedade após terem servido de motivo de riso para o país inteiro).
O programa se torna transfóbico quando genitaliza as pessoas trans.
Se você tivesse amigas trans, não apenas teria um conhecimento real sobre a realidade delas, como também se sentiria ofendido por elas com programas como “Beija Saco”.
Mas é difícil ter amigas trans quando todas moram em uma Translândia, e você vive em meio a seus privilégios, não é? Onde e como fazer tais amizades? Se a sociedade não mudar seu tratamento com pessoas trans* isso pode se tornar cada vez mais difícil. Pois é devido a programas como este que muitas sempre terão medo de sair na rua e serem quem elas são.




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