GUEST POST: UM HOMEM QUASE ESTUPRADO
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GUEST POST: UM HOMEM QUASE ESTUPRADO


Na segunda a novela das 9 da Globo, Império, teve uma cena em que uma personagem diz que "quase estuprou" um homem. 
Você pode conferir a cena na íntegra.
Ana, uma leitora querida e antiga aqui do blog (que ultimamente vem assinando seus comentários como Ana Banana), não gostou nada disso, e explica por quê:

Imagine-se olhando a novela quando, de repente, um rapaz confessa: “Eu quase estuprei a moça lá na festa!”. Qual seria a sua reação?
E se fizéssemos uma troca? E se, ao invés de um homem, tivéssemos uma mulher dizendo “eu quase estuprei o cara lá na festa!”?
Bem, nesse caso, digo que não é mais necessário imaginar – a Globo já nos fez o favor de por essa cena na televisão. O contexto é o seguinte: Maria Marta (Lília Cabral) quer acabar com o casamento do filho, Zé Pedro (Caio Blat). Para isso, traz para dentro de casa sua sobrinha Amanda (Adriana Birolli), ex-namorada do rapaz, esperando que ela arruine seu casamento. 
Quando nada funciona, Maria Marta reclama, e é aí que Amanda se defende: “Me aplicar mais, tia? Eu agarrei o Zé Pedro ali na escada! Eu saí no tapa com a mulher dele semana passada! Eu quase estuprei o cara lá na festa da Clara!”
Vamos por partes. Se eu dissesse a você que um primo meu “me agarrou na escada da minha casa”, acredito que receberia muitos comentários solidários e que o sentimento geral seria de profunda indignação contra esse primo. Se você é mulher, você sabe que o verbo agarrar não é agradável, na maioria dos casos. Você provavelmente já foi agarrada por algum homem, talvez um cara bêbado em uma balada, talvez um homem muito mal intencionado dentro da sua própria residência. Ser agarrada não é bom. Em geral, tenho um desconforto muito grande com esse verbo.
Portanto, quando Amanda diz que agarrou Zé Pedro na escada, o que sinto é preocupação. Em seguida, me lembro que Amanda dificilmente seria capaz de agarrar com a força de um homem, daí Zé Pedro não deve passar pelo sufoco que eu passaria. Mas, honestamente – e daí? Se meu primo fosse um rapaz fraquinho continuaria sendo muito desagradável ser agarrada. Eu gostaria de ter o direito de reclamar e ser levada a sério. Por que não dar o mesmo direito ao Zé? Não consigo pensar numa razão boa o suficiente. Ele podia se defender? Provavelmente sim, e aliás, vem frustrando os ataques da prima há muitos capítulos. Isso alivia o que Amanda tem feito? Não. Isso alivia a nossa parcela de culpa, por assistirmos sem nos revoltarmos? Não. 
Amanda persegue Zé Pedro há dias. O homem lhe disse inúmeras vezes, em alto e bom som, que não a quer. Amanda insiste. Rouba beijos, agarra, “quase estupra”. E tudo isso é colocado no horário nobre da TV, sem que em momento algum as palavras “assédio sexual” sejam ditas. 
Tudo bem, a trama é um esquema, uma coisa ruim, uma coisa de vilã -- Maria Marta é uma vilã. Não é mostrado como algo positivo. Mas também não é uma tragédia: é só uma prima dando em cima de um cara. Não há a mínima consideração com Zé Pedro, seu corpo, seu espaço, sua vontade própria. Não há reflexão em cima disso, não se comenta o atropelo de consentimento. Por quê? 
Uma mulher pode “quase estuprar” um homem sem consequências? Nós sempre batemos o pé sobre como estupro é um assunto sério e sobre como relativizar a violência é parte do problema. Por que, então, eu deveria ouvir a palavra estupro dirigida a um homem e não me preocupar? Por que deveria ignorar ou minimizar o que foi dito? Não trataríamos essa frase como apenas uma expressão se ela fosse dirigida a uma mulher. 
Acho que não devemos tratá-la assim porque a vítima em questão é um homem. Fazer isso seria compactuar com a ideia de que o homem não pode ser vítima (e por tabela, dar a entender que nós sempre somos vítimas). É danoso e irresponsável.
Estima-se que, dentre as vítimas de estupro, aproximadamente 10% sejam homens. Supondo que esse dado esteja correto: 10% é um número muito menor que 90%? Sim, é. 10% é um número irrelevante? Dadas as circunstâncias, não. Ainda que o número fosse muito menor que esse, ainda que beirasse o zero, devemos manter em mente que a porcentagem representa pessoas – homens de verdade. 
Esses homens existem, e importam. Esses homens enfrentaram grandes barreiras para falar. Não podemos estuprá-los novamente fingindo que eles não existem. Não podemos deixar que o estupro contra homens seja visto como algo trivial ou imaginário, qualquer que seja o sexo do agressor.
Devemos ter em mente também que não falamos somente de homens, mas também de crianças e adolescentes, que são particularmente vulneráveis. Talvez um homem crescido pudesse se defender, mas e um menino? Como se defenderia de uma agressão sexual de uma mulher, que poderia muito bem ser uma figura de autoridade? Que estamos dizendo aos nossos meninos e aos nossos jovens quando veiculamos essas coisas na TV?
Até 2009, entendia-se judicialmente que um homem não poderia ser vítima de estupro. A definição antiga de estupro (Lei Nº 12.015, Art. 213) era: “Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça.”
A nova definição é: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.”
Podemos notar duas mudanças claras na lei: 1) “mulher” foi substituído por “alguém” e 2) estupro deixou de ser apenas a conjunção carnal, podendo ser também “outro ato libidinoso”. “Conjunção carnal” deve ser lido como “penetração vaginal”, enquanto sexo oral ou anal são considerados atos libidinosos -- até 2009, tais atos eram o chamado “atentado violento ao pudor”. Como a vítima de estupro era por definição mulher, aos olhos da lei um homem podia, no máximo, ser violentado.
A definição original de estupro é de 1940. Minha avó estava nascendo nesse ano. Demorou desde o nascimento da minha avó até 5 anos atrás para que homens pudessem ser vistos como vítimas. Pare por um momento e pense nisso. Agora lembre-se que uma personagem feminina disse, em horário nobre, que “quase estuprou” um homem. Ainda parece algo pequeno?




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