GUEST POST: VÍTIMAS SE COMPORTAM DE FORMA DIFERENTE
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GUEST POST: VÍTIMAS SE COMPORTAM DE FORMA DIFERENTE


A A. me enviou este relato muito interessante sobre o abuso que sofreu. Mais ainda do que isso, é uma reflexão sobre como não existe uma única forma de superar um abuso. Exigir que vítimas sigam um roteiro (mesmo que seja o que nos parece o roteiro certo, como o da denúncia) não deixa de ser uma imposição.

Gosto especialmente da sua coragem em problematizar certos pontos. Nem sempre concordo com você, óbvio, mas sinto uma grande honestidade da sua parte em questionar, às vezes, tendências do próprio feminismo. Você é uma pensadora que se arrisca, e eu me identifico com isso.
É complicado falar disso porque eu não sei se resolvi totalmente essa questão na minha cabeça. Também tem o fato de eu sofrer com isso. Mas vou tentar desenvolver um pensamento o mais racional possível, porque eu sinto que, tendo vivido e sobrevivido a isso, e sendo uma pessoa inclinada à crítica, eu tenho condições de refletir a respeito num nível mais profundo.
Gostaria de ressaltar que não se deve exigir NADA de uma vítima. Se ela deseja a morte de quem lhe causou um mal tão grande, que seja. Se ela deseja cadeia, que seja. Eu sei o que é desejar isso e me sentiria novamente violada se alguém me julgasse por isso. Quem nunca passou por uma situação dessas não faz ideia de quão devastador pode ser um estupro. Já cheguei a imaginar planos para matar meu estuprador, que era ninguém menos que meu irmão mais velho. 
Já me imaginei comprando passagem de avião secretamente e matando-o a facadas em frente ao portão, sem me importar com o que isso causaria a sua esposa e a seu filho. Felizmente ele morreu num acidente antes que uma depressão mais severa me levasse a cometer essa burrada (no meu caso, vejo que seria uma burrada, porque eu não gostaria de definir meu futuro dessa forma; sou muito mais que uma vítima de estupro e não quero habitar esse lugar de eterna vítima).
Uma coisa que eu logo percebi quando comecei a enfrentar o assunto é que vítimas podem se comportar muito diferentemente: umas se tornarão para sempre perturbadas; outras terão de lutar bravamente para manter um equilíbrio possível (eu me vejo assim); outras ainda não acharão que aquilo tenha sido o pior por que passaram (fiquei chocada há um tempo lendo uns relatos de mulheres que diziam não ter ficado tão marcadas assim pelo abuso -- sem dúvida uma perspectiva complicada, mas o que se vai fazer? Duvidar do caráter dessas mulheres?). 
Então não dá para reduzir a vítima a um conjunto fechado de características. Nesse ponto, achei muito interessante o que disse a Natascha Kampusch sobre seu drama. As pessoas queriam que ela se comportasse de determinada forma, que execrasse seu algoz e se fizesse de coitada. E ela sentiu que essa pressão era uma violência perpetrada pela sociedade. Ela se recusou a desconsiderar a complexidade de seu sequestrador, se recusou a vê-lo como um monstro. E disse que considerar um homem como Wolfang Priklopil como um ser desprovido de humanidade é uma forma de a sociedade alimentar sua própria hipocrisia, de ignorar que o mal a permeia em diferentes níveis.
Outro ponto. Eu acho que entendo que um abuso sofrido na infância possa te trazer tanta perturbação que você se sinta impelidx a repetir o abuso, especialmente se você não tiver nenhum suporte psicológico. Sabemos que entre garotos abusados isso é bastante recorrente. Por outro lado, as meninas tendem a ser eternamente abusadas. Não é uma regra, mas é uma tendência. Não sei se isso pode ser explicado por algo que diga respeito ao machismo; fato é que em geral meninos e meninas incorporam a estrutura do abuso de maneiras distintas.
Alguns meninos tendem a alimentar a cadeia se tornando abusadores; meninas tendem a reviver psicologicamente o abuso e a se tornarem repetidamente vítimas (algo como atrair ou permitir abusadores, certamente por sua autoestima destroçada e sua ideia de "merecimento" do abuso).
Atualmente eu não sinto ódio (claro que esse sentimento pode voltar; provavelmente não sinto ódio hoje porque estou num bom momento). Mas eu sinto uma angústia pela lacuna. Não sei o que o levou a fazer isso comigo. Sei que ele se arrependeu (ele me pediu perdão quando eu tinha uns 12 anos; os abusos pararam quando eu tinha 7, mas não sei exatamente quando começaram), e hoje eu acredito nisso, mas não sei como ele veio a se tornar um abusador naquela idade (13 anos, eu acho, mas pode ter começado ainda antes). 
Ele estudou um tempo num colégio interno, e antes disso morou por algum tempo com minha avó, longe da gente. Não sei o que pode ter acontecido com ele ali. E de repente algum adulto, esse sim consciente, pode ter iniciado uma cadeia monstruosa de trauma que eu espero que tenha acabado em mim. Um adulto que causou uma cisão tão grande no meu irmão que o tornou não apenas um agressor sexual, mas uma mente atormentada que não conseguiu se livrar do alcoolismo, do vício em cocaína e do impulso suicida (ele morreu de acidente mas tentou suicídio duas vezes). 
Claro que sofro muito até hoje, eu sinto essa dor diariamente e percebo espectros do trauma em muitos segmentos da minha vida (não apenas sexual). Hoje o que me incomoda é que eu nunca vou saber se isso aconteceu a ele, e, mais ainda, como a hipocrisia é um ponto central para a manutenção do abuso e do sofrimento. Pela hipocrisia talvez o suposto abusador dele seja para sempre considerado um homem bom. Por hipocrisia minha família jamais saberá do ocorrido (exceto se eu decidir falar; não pretendo fazer isso enquanto meu pai estiver vivo, porque não quero que ele sofra), e ele morreu sendo considerado um homem bom. 
ISSO é muito errado. Ele não era um homem bom. Ele pode não ter sido um monstro completo, mas não era um homem bom. Ele causou um mal irreversível na minha vida (espero que apenas na minha). No seu enterro, eu me lembro de ter ficado extremamente confusa. Era minha mãe perdendo um filho. Era alguém da minha família morrendo muito jovem. Era o primeiro cadáver que eu via e tocava. Era alguém por quem eu não sabia se nutria algum lastro de bom sentimento. Era alguém que eu me senti impelida a perdoar ali (sou ateia, mas talvez tenha ficado emocionalmente fragilizada com a situação). 
Era uma vítima revoltada por ver que aquela história jamais seria concluída e que as pessoas jamais saberiam que ali jazia alguém que por pouco não destruiu outra pessoa. Alguém que foi tão longe no mal que foi capaz de machucar uma criança, de ameaçá-la de morte; de dizer a essa criança que ela não tinha ainda como engravidar, portanto aquilo não era um problema; alguém que queria que aquela criança dissesse que estava gostando de ser estuprada.
Mas eu acho que nem sempre o abusador faz aquilo porque se sente no direito. Porque quer destruir a outra pessoa. Meu irmão pode ter sido sexualmente abusado, ou pode ter querido descontar em mim alguma outra frustração (minha família era bem bagunçada na época). Isso é muito horrível, isso ferrou com a minha vida, mas à medida que eu amadureço eu tendo a imaginar as coisas de uma perspectiva mais trágica e menos dual, isto é, sem muita compatibilidade com a estrutura vilão-vítima. Obviamente eu fui vítima e não me sinto em nada responsável ou merecedora do que aconteceu, mas não consigo pensar nele como a encarnação do mal. Na verdade eu tenho extrema pena dele.
Quanto à punição legal: eu acho que, de modo geral, as pessoas devem ser julgadas pela justiça. Mas penso também que nosso sistema penal é ridículo, e que cadeia é lugar pra quem oferece perigo à sociedade. Não sei se ele era um perigo à sociedade. Não sei se a cadeia ajudaria em alguma coisa -– a mim e a ele. Por muito tempo minha maior revolta era ele nunca ter ido preso; depois, como eu disse, minha maior revolta passou a ser o fato de que ninguém nunca tocou no assunto, de que eu tive de continuar convivendo com ele; ele continuou sendo considerado por minha mãe e minha irmã uma pessoa normal (certamente precisasse de tratamento), e eu igualmente não tive nenhum apoio psicológico e tive de construir minhas próprias ferramentas de sobrevivência. 
Não sei até que ponto meu relativo equilíbrio é um castelinho de cartas de baralho prestes a desmoronar. 




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