MINHAS REFLEXÕES NO DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA
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MINHAS REFLEXÕES NO DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA


Projeto do artista visual Dalton Paula, de Goiânia

Eu cresci ouvindo que não tenho raça, não tenho cor. Só porque minha cor é o padrão dominante. 
Cresci ouvindo o termo "cor de pele", sem perceber que essa cor se referia apenas a minha cor. Não lembro onde li pela primeira vez que "band-aid cor de pele" é feito pra minha pele, que é branca, e que se uma pessoa negra precisar de um band-aid, ela terá que comprar um band-aid específico, para cor de pele negra. Mas me lembro da minha surpresa ao ver que, quando falam(os) em "cor de pele", estão falando apenas da minha cor, e excluindo todas as outras. 
Mas teve várias coisas que eu notei faz tempo. Por exemplo, é óbvio que eu percebia que na escola de elite onde estudei não havia alunos nem professores negros. Depois, numa universidade de ponta na área (Publicidade) em SP, não havia negros. Só quando fui cursar Pedagogia numa faculdade particular é que tive colegas negras. Três, numa turma de quarenta. Nenhuma professora negra. 
No meu mestrado e doutorado, na UFSC, não tive colegas nem professores negros. Quando fui dar aula pro estágio-docência, todos meus alunos eram brancos. 
De vez em quando a gente conversava sobre como era viver na Islândia, porque aquele universo branquinho na universidade certamente era bem diferente do resto do Brasil, em que mais de 50% da população é negra. Até pro padrão catarinense (o estado com menos negros no país), em que "apenas" 13% do pessoal é negro, deveria haver mais gente de outras raças (sabe onde mais apenas 13% da população é negra? Nos EUA. Mesmo que lá, ao contrário daqui, negros sejam minoria, vemos negros  -- poucos -- em universidades, na mídia, em posições de poder). 
Lembro de um bate-papo que tivemos numa turma pequena de doutorado, só cinco alunas, mais a professora, todas brancas. Acho que era 2006, e naquela época cotas raciais para alunos estavam começando a ser discutidas por gente mais leiga. Como todas éramos de esquerda, e pelo menos a esquerda com quem convivo reconhece o racismo na sociedade, todas éramos a favor das cotas raciais. Pelo menos para alunos. 
Quando passamos a pensar sobre cotas raciais para professores, a coisa não foi tão simples. Afinal, nós éramos, ou seríamos, professoras universitárias. E crescemos sendo doutrinadas por uma ideologia que valoriza, acima de tudo, a meritocracia. A meritocracia nos fazia sentir bem em relação a nós mesmas. Porque a gente aprende a acreditar que chegamos onde chegamos (num doutorado numa excelente universidade pública) porque merecemos, porque demos duro, por nosso esforço e competência. A meritocracia apaga heranças históricas e estipula que as oportunidades são iguais para todos, e que se você não chegou a uma universidade pública, é porque você simplesmente não se esforçou o bastante. Quem acredita nisso só pode acreditar que negros são muito preguiçosos.
Eu e minhas colegas fazíamos o possível pra combater esse pensamento. E concluímos, naquela aula, que éramos a favor de cotas raciais para professores também. E acho que naquele momento nem conhecíamos a porcentagem de professores negros na melhor universidade do Brasil, a USP: 0,2%. Como explicar um número desses? Dizer que negros não querem, não gostam de dar aula? 
Mas é um erro dizer que não tem negros nas universidades. Porque tem, sim. É só olhar pro pessoal de limpeza, da cozinha, pra quem cuida dos gramados. Arrisco dizer que a maior parte é negra. Como explicar a predominância negra nos serviços braçais que pagam muito, muito menos que qualquer outro emprego numa universidade? Dizer que negros gostam de trabalho ao ar livre?
Desde 2010 estou na UFC. Pelas estatísticas, 64% da população do Ceará é negra. Não dá pra acreditar nisso quando se liga a TV, porque aí a gente se sente na Suíça. E definitivamente não é o que se vê nos corredores da universidade. Tenho alguns alunos negros e pardos. Mas no meu departamento de Letras Estrangeiras, somos 45 professores. Apenas um é negro. 
Pra mim, que nunca fui discriminada pela minha cor, é fácil dizer que não existe cor. É fácil dizer que raças não existem. 
Porque, né, pra mim nunca existiram mesmo. E, lógico, é mais fácil ainda dizer que não somos racistas, que não existe racismo -- afinal, eu nunca senti isso na pele. Mas vai falar isso pro meu colega negro, o único professor negro num departamento de 45 pessoas. Vai falar pro meu colega negro que cor não existe, ele que só não é chamado de "negão" num único lugar de sua vida -- na universidade. Em todos os outros lugares que anda, as pessoas se referem a ele como "negão". E aí? Cor não existe? Ué, mas como não existe, se todo mundo percebe a cor do meu colega negro? Como não existe, se definem meu colega negro unicamente pela sua cor?
Não posso (nem quero) falar por pessoas negras, nem pobres, nem homossexuais, nem trans, porque não sou negra, pobre, lésbica ou trans. E creio que pessoas negras, pobres, homossexuais, trans, com necessidades especiais, devem falar por si mesmas, e a mim me cabe ouvir. Eu luto para apontar preconceito e discriminação contra negros, pobres, homossexuais e trans. Escrevo sobre isso, abro espaço no meu blog pra essas vozes, sempre que me procuram. E muitas vezes eu as procuro. Luto para que esses meus privilégios sejam vistos como privilégios, não como mérito. Luto para que esses privilégios que no momento são meus, e sempre foram meus, deixem de ser privilégios e se transformem em direitos para todos. 
Eu quero que pessoas negras sejam vistas iguais às brancas, mas se eu negar a opressão que pessoas negras enfrentam, estarei dizendo que ambos têm os mesmos direitos e oportunidades na sociedade, o que não é verdade. Quero direitos iguais. Mas, ao mesmo tempo, também quero leis que tratem desigualmente os desiguais. E isso não é preconceito -– é enfrentar o preconceito. Defendo cotas raciais para alunos, professores funcionários públicos, porque reconheço que negros não estão presentes nesses espaços, e porque reconheço que eles não têm as mesmas oportunidades que eu tenho para ingressar nesses espaços. Reconheço uma dívida histórica. 
Hoje, dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, é uma data de luta, de reivindicações, de comemorar conquistas, de orgulho de ser negrx. Pra quem é brancx, meu caso, deve ser um dia de reflexão, de reconhecer os privilégios que tenho por ser branca, de entender o meu papel de opressão nessa engenharia social, de ler e ouvir pessoas e movimentos negros. Claro que tudo isso não deve ficar restrito a um só dia do ano. 
E pra quem é brancx e está gastando todas suas energias vociferando "Abaixo cotas raciais" e "Orgulho branco" e "Zumbi tinha escravos" e "Eu também sofro racismo porque uma vez na quarta série fui chamado de branquelo" e "Consciência Negra? Que piada!", só um recado: você está sendo racista. Pare e pense no que a sua atitude ajuda a transformar o mundo. Agora feche os olhos e tente imaginar um mundo sem racismo. Não seria um mundo melhor pra todos? 




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