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UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
Durante uma das aulas do doutorado, falávamos em ação afirmativa, que engloba o sistema de cotas. Todas as cinco alunas e a professora, todas nós brancas, éramos a favor do sistema de cotas. Mas aí a coisa complicou. Alguém perguntou: tá, cotas pra alunos, tudo bem, mas e se forem cotas pra professor, como tem nos EUA? Nosso coração acadêmico, tanto o da professora quanto o das futuras professoras universitárias, balançou. Já não era tão fácil dizer que éramos a favor. Tivemos que pensar um pouco. Um adendo: a ideia das cotas (para alunos; para docência nem está em cogitação), ao contrário do que muitos pensam, não é incomodar o pobre aluno branco de classe média. É dar chance a um grupo que simplesmente está fora da universidade. Nesse meu primeiro concurso em universidade pública, na Universidade Federal do Ceará, éramos 15 candidatos disputando três vagas. Lá no edital havia uma cláusula que reservava uma das vagas para a pessoa portadora de deficiência física (há uma lei de 1990 que garante reserva de 5% das vagas em concursos públicos para portadores de deficiências).Quando li o edital, você acha que passou pela minha cabeça pensar: “Putz, que injustiça! Só faltava eu perder a minha vaga pra um cadeirante!”? Não passou. Pelo contrário: eu considerei justo que uma pessoa com necessidades especiais, que já tem mil e um obstáculos a mais que eu na vida (literalmente falando, inclusive), tivesse um tiquinho de vantagem. Agora, repare só num detalhe: em nenhum lugar do edital tá escrito que era só um cego passar na frente da universidade que, pá pum, seria contratado. O candidato com necessidades especiais, pra se inscrever naquele concurso, teria que ter no mínimo mestrado na área, fazer as provas como qualquer um, e tirar as notas mínimas (sete). Se ainda assim ele passasse, uma vaga seria dele. Não houve nenhum inscrito com deficiência.Não estou comparando pessoas com necessidades especiais com outras minorias (igualmente) historicamente discriminadas. Mas por que tanta gente aceita de bom grado que sim, deficientes físicos enfrentam grandes dificuldades num mundo que não foi pensado pra eles e merecem uma forcinha, e negros não? Sendo que um negro no Brasil ganha 40% menos que um branco? Dos 15 inscritos no meu concurso, 9 eram homens, 6 mulheres. Prum curso de Letras! Embora a maioria dos alunos no ensino superior, hoje, já é de mulheres, ainda há bem mais professores que professoras universitárias. E você conhece muitas reitoras? Pois é, nem eu. Eu fui a única mulher aprovada no concurso. E havia apenas um negro entre os 15 inscritos. Dos quatro candidatos aprovados para a prova didática, ele era o único mestre. Todos os outros eram doutores. Compreensivelmente, ele estava muito inseguro, crente que não conseguiria uma das três vagas. E passou. Confesso que fiquei super feliz por ele. Não só por ele ser simpático e competente (os outros também eram), mas por ele ser negro. Se alguém acha que isso é racismo inverso, paciência. É querer tapar o sol com a peneira. Se eu festejasse a aprovação de um candidato branco, eu estaria sendo racista. Festejar a aprovação de um negro, num contexto em que existem pouquíssimos docentes negros, é vibrar por uma sociedade um tiquinho menos desigual. Entre os meus professores na UFSC, nenhum era negro. Quando dei aula de estágio docência, não tive nenhum aluno negro (e olha que é Letras, “curso de pobre”, como dizem). No mestrado e doutorado, não tive colegas negros. Não sei se na UFC é diferente, mas duvido. Na USP, sabe o porcentual de professores negros? 0,2%. Não chega a um por cento, num Estado que tem 31% de população negra! Quem nega a existência do racismo no Brasil pode tentar interpretar esses números da melhor maneira possível. Pode dizer que, ué, de repente negros nem ambicionam ser professores universitários, e eu aqui, querendo forçá-los! Pode dizer que o problema não é racial, é socioeconômico, que pra ser professor universitário tem que ser classe média pra cima, então os negros não estão inclusos nessa. O que eu acho engraçado é que essa gente que nega o racismo nunca se pergunta por que, se vivemos num país com oportunidades iguais para todos (e quem crê em meritocracia crê também em oportunidades iguais), tantos negros são pobres, e tantos pobres são negros. Na tentativa de explicar o inexplicável, a pessoa precisa acabar assumindo seu racismo: é por que negros são preguiçosos? Não se aplicam tanto? Esses argumentos circulares me lembram um grupinho de alunos adolescentes que tive. Normalmente adoro adolescentes, mas esse grupinho era fogo. Eram só uns seis pra quem eu dava aula de inglês. Todos apáticos, do tipo que você perguntava “O que você mais gosta de fazer?”, e o rapaz respondia, “Dormir”. E eram todos brancos, claro, ricos e mimados. Um dia eu comecei a falar, em inglês, sobre desigualdade racial. E mostrei os dados que dizem que uma mulher negra ganha, em média, um quarto do que um homem branco ganha no Brasil. Meus aluninhos, rindo, nem piscaram. Num dos raros momentos que despertaram de sua apatia, gritaram em coro: “Mas é claro, né, teacher? Todas as mulheres negras são empregadas domésticas!”. O raciocínio deles parava aí. Eles não se permitiam perguntar por que tantas (claro que não todas) mulheres negras são empregadas. Não viam racismo algum nessa situação. E obviamente não se consideravam privilegiados. E muito menos racistas.Lá em Detroit, onde passei um ano fazendo doutorado-sanduíche (ou seja, tive o privilégio de ser paga pra pesquisar), mais de 80% da população é negra. Mas, na universidade, Wayne State, nem a pau que 80% dos alunos era negra. Dos professores, então, nem se fala. O reitor sim era negro. Se isso faz você se sentir melhor, eu até escondo o fato que ele foi o primeiro e único reitor negro em 140 anos da universidade.Sabe, é como a anedota de um aluno que estuda numa das melhores e mais caras escolas do Brasil. Tem cem alunos na turma dele. E aí ele se levanta e discursa: “Pô, não entendo por que esse sistema de cotas quer dar tanta vaga pra negros! Pra quê isso? Só tem um negro aqui na sala!”A propósito, naquela aula no doutorado, chegamos à conclusão que somos a favor das cotas para negros na docência, também. Por uma questão de justiça.
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