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SOU CONTRA A POLÍTICA DE COTAS... NO PARAÍSO
Outro dia, enquanto estava andando pelo zoológico de Detroit, refleti sobre como os argumentos de algumas pessoas contra cotas pra negros nas universidades públicas são parecidos com os das pessoas contra zoológicos. Assim: animais nasceram pra ficar livres no seu habitat natural, seu espaço precisa ser preservado, ninguém deveria caçá-los. Nisso eu concordo totalmente, não há discussão. Mas, voltando ao Planeta Terra, a realidade é que os habitats das espécies foram destruídos em todo o globo, montes de animais foram extintos ou estão ameaçados de extinção, e ainda existem homens que adoram matar animais selvagens, seja por um prazer sádico que eles chamam de esporte (essa gente não pode ser minha amiga), ou porque dá dinheiro. Logo, se um rinoceronte tiver que escolher entre desaparecer completamente do mundo ou viver protegido num zoológico, pra que os filhos do bicho homem talvez aprendam como os outros bichos são lindos e queridos, o que ele iria querer? Difícil dizer. Minha comparação entre ser a favor de zôos e de cotas parece espúria, eu sei. Mas só queria lembrar que adoro animais, e que não considero humanos de qualquer raça, cor e nacionalidade superiores a eles. A única desvantagem que vejo nos animais é que eles não aprendem a jogar pôquer, e mesmo que aprendessem, não teriam o polegar opositor pra segurar as cartas. Mas falando sério. Ao contrário do rinoceronte, que não pode comunicar claramente ao mundo sua preferência entre estar extinto ou viver trancafiado -- e observado -- num zôo, na questão das cotas, felizmente, os negros têm voz, e a maior parte é a favor delas. Então eu também sou. Pra mim já é um bom motivo pra ser a favor que a parte discriminada seja a favor, ué. Num mundo ideal, lógico, as cotas não seriam necessárias. Os negros teriam condições iguais de ingressar numa universidade pública, já que as escolas públicas seriam tão boas quanto as particulares (que eu não considero nenhum supra-sumo), haveria mais vagas nas universidades, e, pensando bem, os vestibulares seriam abolidos. Entraria numa universidade pública quem quisesse, desde que mostrasse um mínimo de competência. Perfeito. Seria lindo mesmo. Mas enquanto isso não acontece, eu, que fiz mestrado e agora faço doutorado na UFSC, não tenho colegas negros. Dei aulas na graduação de Letras (curso “de pobre”, dizem) como parte de estágio-docência e não tive um só aluno negro. Ah, mas Santa Catarina tem poucos negros. É verdade. É o estado brasileiro com menos negros, apenas 13% da população. Esse número soa familiar... Opa, 13% é a mesma quantidade de negros que os EUA têm! E no entanto, apesar de todo o racismo e segregação que há nos EUA, a gente vê muito mais negros nas universidades, na mídia, nas telas do cinema... O Brasil tem 45% de negros e mulatos. É o país fora da África com a maior quantidade de negros. Mas as nossas universidades públicas são de dar inveja ao Estado Ariano que Hitler queria. Não só na ausência de alunos negros, mas de professores negros. Sabe quantos negros a USP tem em seu corpo docente? 0,2%. É coincidência, ou será que os negros não querem ser professores? Na discussão das cotas, há a questão de como, num país belamente miscigenado como o nosso, poderíamos determinar quem é e quem não é negro. Não é como nos EUA onde, se você tem um pinguinho de sangue negro, você é negro. Acho que as universidades deveriam ter autonomia pra decidir essa questão. Algumas trabalham com fotos dos candidatos, outras com auto-declaração. Ah, mas aí todo branco vai se declarar negro pra entrar na universidade! Sim, claro! Em que mundo uma pessoa que diz isso vive? Naquele em que os animais vivem livres no seu habitat natural? Ou num em que mulheres negras que não alisam o cabelo são ofendidas na rua, por ousarem mostrar seu “cabelo ruim”? Inclusive, quando a gente viver num mundo em que não exista mais essa expressão de “cabelo ruim”, me avise. Enquanto vivermos num mundo em que há cremes de beleza chamados “White Beauty” pra clarear a pele, acho que muito pouco branco vai mentir que é negro. Claro, vai haver aqueles (poucos) que mentem. Mas essas pessoas são corruptas. A gente não é contra corrupção no governo? Então a gente tampouco deveria achar “esperta” a pessoa que mente pra burlar a lei e levar vantagem em tudo, certo? Tem gente que é contra as cotas por achar que no Brasil não existe racismo. Desconfio que essa gente não seja negra. Não é negando a existência do racismo que vai se acabar com ele. Pelo contrário, pra combater o racismo ou qualquer outro problema é necessário admitir que esse problema existe. O Brasil foi o último país a abolir a escravatura, e isso aconteceu há apenas 120 anos. Pra comemorar a data escolhemos uma branca, a Princesa Izabel, ao invés de um herói negro da resistência, como o Zumbi. Essas escolhas não são por acaso.
E tem quem é contra as cotas por ser desinformado, pura e simplesmente; por achar que as cotas significam que só os negros ocuparão as cadeiras universitárias. Na maior parte das universidades, o sistema das cotas me parece totalmente justo: 50% das vagas são reservadas pra alunos vindos de escolas públicas. Isso é muito, se considerarmos que menos de 20% da população brasileira estuda em escolas particulares. Logo, a gente vê que existe uma distorção enorme: se apenas uma minoria da população vem de escolas particulares, por que a maioria dos estudantes em universidades públicas é oriundo de escolas particulares? Porque no Brasil se instituiu que 1) universidades públicas são melhores que as privadas (e são mesmo, sem dúvida. Há mais pesquisa e professores melhor preparados, porque as universidades públicas não visam o lucro, como suas colegas particulares), e 2) pessoas de classe média e alta merecem sempre o melhor. Se as escolas particulares são melhores, vamos colocar os filhos lá. Se as universidades particulares são melhores, é pra lá que eles vão. E não há nada de errado em querer o melhor pros filhos. O que é errado é pensar que vivemos num mundo com oportunidades iguais, que nós e nossos filhos cursamos as melhores escolas e universidades por mérito, porque nós trabalhamos mais e somos mais inteligentes que os pobres, então nada mais justo que nossos filhos perpetuem o sistema. Nessa lógica, fica implícito que, se os pobres -– muitos deles negros -– se esforçassem mais, eles estariam exatamente no mesmo patamar que nós. A gente nem se considera privilegiada! A gente se faz de coitadinha, vive dizendo como sofre, como o governo é malvado com a gente, como paga impostos tão altos. Deve ser legal viver nessa ilusão de que a gente não só sofre, mas tá numa posição muito melhor que a maior parte dos brasileiros (e da população mundial) porque a gente batalhou pra isso, mereceu! O sistema de cotas reconhece que sim, existem desigualdades (que nós fingirmos não ver). E dedica 50% das vagas pra gente que vem de escolas públicas. Desses 50% (e não do total), separa-se X pra alunos negros (também vindos de escolas públicas). X porque essa porcentagem depende do número de negros em cada estado. Aqui em SC, seria 13% (e 13% dentro desses 50% dá o quê, 6%? Não vai mudar a sua vida, você ainda vai conseguir entrar na universidade, sossega!). Na Bahia, seria 80%. Inclusive, a Bahia é um ótimo exemplo de como a discriminação racial é enorme no Brasil. Não sei a porcentagem de alunos negros nas universidades públicas baianas, mas, numa população em que 80% é negra, a gente gostaria de supor que fosse o quê, pelo menos 50%?
Outro argumento contra as cotas: ah, aceitando alunos de escolas públicas, o nível da universidade vai cair. Bom, primeiro que, se você falar com alguns professores universitários, eles vão dizer que o nível já não é lá grande coisa. Não é só porque nós da classe média somos batalhadores e merecedores e por termos estudado em escolas particulares que o nosso nível seja essa maravilha, né? Eu lembro do Show do Milhão e do “Pergunte aos universitários”. Segundo que já há pesquisas mostrando o desempenho desses novos alunos beneficiados por cotas, e as notas deles costumam ser tão boas ou melhores que a dos outros alunos. O sistema de cotas aceita que existe uma discriminação histórica que precisa ser combatida. Eu acho bem chato chegar pra um aluno negro de segundo grau de escola pública em idade pra ingressar na universidade, que não tem como pagar um cursinho pré-vestibular e nem teria como pagar uma faculdade particular, e falar pra ele: “Espere que a educação no Brasil melhore como um todo, que as escolas públicas sejam boas, que haja mais vagas nas universidades públicas. Seja paciente porque, quando esse dia chegar, você vai garantir a sua vaga”. Do alto do nosso privilégio nós, da classe média branca, falamos pra alguém sem privilégio algum esperar pacientemente. E essa é a parte liberal da classe média, que reconhece que o racismo existe e gostaria que ele deixasse de existir, desde que isso não implique um milímetro quadrado de sacrifício nosso. A parte conservadora da classe média ora diz que o racismo não existe, ora diz que, se existe, é por falta de esforço dos negros, que são muito preguiçosos, sabe? E que o mundo é assim, sempre foi assim, e não dá pra mudar. Bom, olha a novidade: dá pra mudar. Mas tem que ser por decreto. Por cotas.
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