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O "Mercado de Notícias" no século 21
Por Luciano Martins Costa, no Observatório da Imprensa:
Assistir ao filme O Mercado de Notícias, do diretor gaúcho Jorge Furtado, é uma maneira de analisar a reputação da imprensa junto à classe média tradicional das grandes cidades, ou seja, pode-se perceber o sentimento que a imprensa provoca em seu público mais característico pelas reações da plateia no cinema.
Classificado como documentário, o filme é quase um produto jornalístico, ao propor uma avaliação das práticas do jornalismo contemporâneo e oferecendo como referência a visão que se tinha da imprensa em seu nascimento, nas ruas de Londres no século 17.
Basicamente, o roteiro apresenta cenas da peça teatral “O Mercado de Notícias”, escrita pelo dramaturgo inglês Benjamin Jonson e encenada pela primeira vez em 1626, como uma sátira ao surgimento dos folhetins semanais que traziam notícias impressas, de forma organizada e periódica. Intercaladas a cenas da peça, produzidas exclusivamente para o filme, Jorge Furtado apresenta entrevistas com jornalistas brasileiros que ele considera representativos da melhor imprensa nacional.
Da mesma forma em que é apresentado na obra de Jonson, o jornalismo ainda é visto hoje como um negócio que busca o lucro sob o escudo de uma justificativa moral fundada no interesse coletivo. “Pecúnia”, personagem-símbolo do lucro na obra do dramaturgo inglês, sobrevive na imprensa contemporânea como o contraponto de uma visão ideal do jornalismo.
Os profissionais entrevistados, de modo geral, buscam elaboradas formas de interpretação para sustentar a ideia de que o jornalismo ainda é uma atividade nobre, apesar de seus muitos defeitos. Como não poderia deixar de ser, perpassa quase todas as entrevistas a questão do partidarismo exacerbado que caracteriza a mídia tradicional no Brasil.
Repórteres, editores e colunistas aparecem para dizer que atuam como mediadores de interesses diversos, mas alguns exemplos coletados pela produção revelam, como pano de fundo, que vale tudo no propósito de demonizar um dos lados do confronto político-ideológico que se instalou no país no último quarto de século.
O “Picasso” do INSS
Um dos momentos mais emblemáticos do filme relata uma das mais bizarras “barrigadas” da imprensa nacional, que começou na Folha de S.Paulo no dia 7 de março de 2004, foi reproduzida nos dias seguintes pelos outros meios de comunicação e nunca esclarecida: o caso do “Picasso” do INSS.
Naquela data, um domingo, o jornal paulista publicou na primeira página, sob o título “Decoração burocrata” (ver aqui o texto publicado no interior do jornal), uma reportagem informando que um precioso desenho do pintor Pablo Picasso podia ser visto sob as luzes fluorescentes de uma repartição do instituto de previdência social. Na primeira página da Folha, a foto principal mostrava, perto da suposta obra de Picasso, um retrato do então presidente da República, o ex-sindicalista Lula da Silva.
O teor da edição induzia o leitor a acreditar que o governo do ex-líder metalúrgico não sabia reconhecer o valor de uma obra de arte, além de tratar com descaso o patrimônio público. Em meio às cartas de leitores que reforçavam o preconceito contra o então presidente, um e-mail do próprio Jorge Furtado ao então ombudsman da Folha alertava para a possibilidade de se tratar de uma mera cópia, dessas que se compra em lojinha de museu por dez dólares.
Mesmo alertados para o erro grosseiro, que a essa altura já era reproduzido como verdade pela imprensa internacional, os jornais brasileiros mantiveram o engodo. Mais de um ano depois, em 29 de dezembro de 2005, um incêndio na sede do INSS em Brasília trazia o fac-símile de volta ao noticiário: os jornais anotaram que a obra havia sido resgatada das chamas, intacta. Na Folha, já é uma “obra atribuída a Picasso” (ver aqui); porém, mais uma vez alertados por leitores atentos, os jornais seguem sustentando a bobagem, e surge a teoria de que o quadro teria sido dado ao INSS em pagamento de dívida.
Esse episódio provoca na plateia do filme manifestações semelhantes às que surgem com outras histórias, como o caso da Escola Base, e permitem observar como o público enxerga a imprensa nacional. Declarações de jornalistas tentando justificar erros como esses provocam muxoxos dos espectadores.
A comparação com o jornalismo precário dos primeiros anos da imprensa é inevitável: estamos na Inglaterra do século 17.
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