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Jorge Furtado |
Por Paulo Donizetti de Souza, na Revista do Brasil:
Em 1625, o dramaturgo inglês Ben Jonson escreveu a peça The Staple of News, sobre uma atividade que começava a nascer: o jornalismo impresso. O texto jamais havia sido traduzido para o português, até o cineasta gaúcho Jorge Furtado descobri-la e decidir montar a peça e levá-la ao cinema. Diretor de grandes títulos nacionais como Ilha das Flores, O Dia em que Dorival Encarou a Guarda, O Homem que Copiava, Meu Tio Matou um Cara e Saneamento Básico, Furtado lança neste agosto o documentário O Mercado de Notícias, inspirado na peça do autor contemporâneo de Shakespeare, para discutir a qualidade do jornalismo praticado no Brasil.
Furtado chamou um time de 13 profissionais que considera “intelectualmente honestos” para dividir com o espectador reflexões sobre a profissão, as mudanças na maneira de consumir notícias e o futuro do jornalismo na era digital. As entrevistas são com Bob Fernandes, Cristiana Lôbo, Fernando Rodrigues, Geneton Moraes Neto, Janio de Freitas, José Roberto de Toledo, Leandro Fortes, Luis Nassif, Mauricio Dias, Mino Carta, Paulo Moreira Leite, Raimundo Pereira e Renata Lo Prete. O filme intercala depoimentos, trechos da peça e minidocs que recuperam momentos emblemáticos do jornalismo brasileiro. Transparente, Furtado publicou as entrevistas, com pelo menos uma hora cada uma, no site do filme.
O portal www.omercadodenotícias.com.br traz também o texto original e traduzido da peça, a montagem feita exclusivamente para o documentário e artigos analíticos do mundo da imprensa, em plena “infância” da era do jornalismo digital. “No momento em que o jornalismo de internet reagir, e só publicar comentários assinados, identificados, sem ofensas, aí vai chegar à idade adulta. Por enquanto, ainda permite que as pessoas descarreguem preconceitos, frustrações e ódio.”
O cineasta faz uma reconstituição inédita do caso da bolinha de papel jogada em José Serra, na campanha de 2010, a partir do olhar de cinco câmeras de TV, cada uma de um ângulo diferente. A análise permite se chegar a 99% de certeza sobre a origem do arremesso que levou Serra a uma teatral mesa de tomografia. Mas nenhum veículo foi atrás de chegar aos 100%.
O texto de Jonson pode ser confundido com uma descrição contemporânea do mundo da informação: “Notícias criadas à moda de hoje, vigarices semanais feitas para ganhar dinheiro. E não poderia haver melhor forma para criticá-las do que criar essa ridícula agência, esse mercado onde cada época pode ver sua própria insensatez, sua fome e sede de panfletos de notícias que saem às ruas todos os sábados e que são escritos por quem não sai de casa, sem uma sílaba de verdade.” E Furtado provoca: “Se você tem certeza, está mal informado. O bom jornalismo é o que suscita dúvidas, e a ideia do filme é provocar dúvida”. O objetivo é alcançado. Não se sabe se Ben Jonson era um autor muito à frente de seu tempo ou se o jornalismo de hoje é que guarda resquícios dos mercados de notícias do século 17.
O que o despertou para o interesse de fazer esse filme?
Sempre quis fazer Jornalismo. Não sei viver sem notícias. Tem gente que não dá bola. O Jorge Luis Borges, por exemplo, dizia que não lia jornais porque não acontecem coisas transcendentes todos os dias. Mas eu não sei viver sem. O jornalismo mudou muito com a internet, e teve muita gente que chegou a dizer que não seriam mais necessários jornalistas nem cursos de Jornalismo. Eu pensava o oposto. Naquele momento é que a gente passou a precisar mais ainda do Jornalismo. O jornalista é uma pessoa necessária. Junto tem a questão política. Na era pré-64 todo jornal tinha identificação com alguma força partidária. Em 1964, praticamente todos apoiaram o golpe. Com a abertura, todos acabaram sendo relativamente governistas, com Sarney, Collor, Itamar e Fernando Henrique. A partir de 2003, passaram a ser oposicionistas.
O Janio de Freitas comenta que os veículos aderiram ao processo de democratização, mas com a pretensão de tê-lo sob controle. A era Lula teria passado dos limites?
Os grandes veículos passaram a agir como partidos de oposição. Com a imprensa fragilizada pela concorrência da internet, e partidarizada, tarefas fundamentais do jornalismo passaram a ser descumpridas. E fiquei com mais vontade de fazer um documentário. Fui pesquisar a história do jornalismo e num livro do Peter Burke e do Asa Briggs, Uma História Social da Mídia, encontrei menção a uma peça do dramaturgo inglês Ben Jonson chamada O Mercado de Notícias (no original The Staple of News), de 1625. A peça é uma crítica ao jornalismo inglês, que tem início em 1622. Vi uma incrível atualidade no texto. Aí juntou uma obsessão minha pelo teatro elisabetano e fui estudar a peça. Levamos três anos na tradução. Fiquei espantado como o autor conseguiu em tão pouco tempo perceber questões como a credibilidade da fonte, a origem da notícia, o interesse econômico por trás das notícias, que são questões fundamentais até hoje – e gente que quer ser notícia, que paga para sair no jornal, o sensacionalismo, o consumo de notícia como entretenimento.
A peça foi montada para uso exclusivo no filme?
Foi. Só para o filme. Chamei um grupo de atores gaúchos, ensaiamos durante seis meses, montamos, estudei a peça exaustivamente. Depois peguei o texto e convidei vários jornalistas brasileiros para analisar os temas que a peça discute. E o filme ficou com essas três linhas narrativas: a peça, as entrevistas e os minidocs lembrando alguns casos para ilustrar essas análises.
E com que critério você escolheu os entrevistados?
Totalmente pessoal. São jornalistas intelectualmente honestos, que eu respeito e acompanho e que representam vários veículos e opiniões. Uma das frases do filme é “se você não está em dúvida, está mal informado”. Porque a dúvida é necessária. Eu queria que as pessoas terminassem o filme com muitas dúvidas, novas dúvidas. Falei por pelo menos uma hora com cada um deles e fui misturando os depoimentos dentro de um planejamento lógico. No site tem as entrevistas inteiras, tem a peça inteira, toda a pesquisa que a gente fez – tudo que tem no filme está ampliado no site.
O Raimundo Pereira diz no filme que gosta de consumir as informação da “imprensa burguesa”, pela quantidade de gente e de recursos envolvidos.
Entendo o que ele quer dizer. Com o pouco tempo que tu tens para se informar, recorre aos grandes jornais. Mas discordo um pouco disso, porque os jornais estão todos muito parecidos. Como diz o Janio de Freitas, foi criada uma unidade em torno do antipetismo. Mas hoje em dia, com a internet, tu fazes o “seu jornal”, escolhe o que quer e “monta”.
Os grandes jornais produzem conteúdo para influenciar pessoas, ou o conteúdo é dirigido a pessoas que já tem o apetite aberto e esse tipo de jornalismo?
Tem um pouco das duas coisas. Tem gente que não muda de opinião, e a imprensa vai levar a determinado público exatamente o que ele quer. Mas ao mesmo tempo ela precisa criar novos leitores também, e de certa maneira aqueles que vão atrás de uma leitura sobre futebol ou cultura vão acabar vendo as outras coisas e sair repetindo. As pessoas leem muito manchete e legenda. Outro dia, numa conversa familiar, uma pessoa me disse que soube de um certo acontecido porque “deu na internet”. Que internet? A pessoa se refere à internet como se fosse uma coisa só. Antes tinha o “vi no jornal”, “ouvi no rádio”. Agora, “na internet”. Isso piora a qualidade da informação, porque na internet qualquer um pega o Facebook ou o Twitter e escreve qualquer besteira. Por isso, a produção jornalística é mais séria e necessária.
Ou deveria ser...
Pois é. Se até na grande imprensa hoje em dia chegam a publicar denúncias com base em uma única fonte, com ficha criminal corrida servindo de denúncia contra a honra de uma pessoa, e aquilo vira manchete, imagine no Twitter, no Facebook. Quando essa poeira baixar, acho que a tendência será as pessoas passarem a filtrar mais o que é confiável e o que não é autêntico.
Como um “quadro” do Picasso num prédio do INSS...
(Risos.) Uma das passagens do filme para ilustrar a qualidade do jornalismo é essa. Uma notícia que foi capa de jornais, saiu em revistas na internet e que repercutiu em jornais do mundo todo: de que havia sido encontrado um quadro de Picasso na parede de uma sala na sede do INSS, em Brasília. E na verdade era um pôster, desses que tu compras por US$ 10. Aquele pôster fazia parte de um acervo pertencente ao ilustrador Tomás Santa Rosa. Depois que ele morreu (1956), o acervo foi para o INSS.
Foi um “quadro” de US$ 10 que alguém ofereceu como forma de saldar dívida com o INSS?
Essa seria a pauta. E que parte desse acervo se perdeu. Nas matérias da Folha e do Estadão, o item é tratado como obra de Picasso, quadro de Picasso, pintura, gravura, desenho de Picasso. São cinco diferentes nomes para uma mesma coisa. Coisa de quem não sabe do que está escrevendo, pois cada tipo de obra tem um preço diferente. Mas quem escreveu não estava interessado na verdade, mas em expor aquela imagem num mesmo ambiente em que estava pendurada aquele retrato oficial do ex-presidente Lula. Houve ignorância de quem escreveu que ali havia uma reprodução de uma obra rara do Picasso. E era uma forma de dizer “esse pessoal não sabe lidar com arte”. Era uma mistura de preconceito com ignorância criando um negócio sem pé nem cabeça. E depois não houve a humildade de ninguém para reconhecer que errou.
Como aquele episódio da bolinha de papel atirada em José Serra na campanha presidencial de 2010. No filme, você reconstrói também essa história?
Esse episódio foi registrado por cinco câmeras de TV, cada uma por um ângulo diferente. Serra chegou a interromper a agenda e foi fazer uma tomografia para apurar a gravidade da lesão provocada por um objeto que todos noticiaram como sendo algo arremessado por algum militante governista. Havia câmeras de cinco emissoras de TV ali e ninguém na imprensa foi investigar quem foi o homem que, diante de cinco câmeras, jogou a bolinha de papel em José Serra. O filme mostra fortíssimas evidências de que foi um integrante da própria equipe de segurança do então candidato. Há 100% de certeza? Há 99%. O que os jornalistas têm de fazer? Ir atrás. Achar o cara que jogou a bolinha que todo mundo viu que foi jogada. Aí os jornalistas dizem: “Não dá para acusar sem ter 100% de certeza”.
Não deixa de ser correto, não?
Sim, mas veja o caso do ex-ministro do Esporte Orlando Silva, denunciado por um sujeito que tinha sido preso por um desvio de mais de R$ 1 milhão, de um convênio de R$ 2,5 milhões com uma entidade que atende crianças carentes. Esse cara, quando saiu da prisão, deu uma declaração ao repórter: “Na época eu fiquei sabendo por um dos operadores do esquema que o ministro recebia dinheiro na garagem...” E a manchete foi: “Ministro recebia dinheiro na garagem”. Qual a credibilidade dessa fonte para transformar o que ela diz em manchete da Veja, sem checar se o que ele está dizendo procede?
Diariamente deparamos com um festival de “teria dito”, “teria feito”, “supostamente”. Por que a imprensa não checa antes de publicar? Não é curiosa o bastante?
Aí vem o viés ideológico. Se o boato favorece o pensamento do jornal, checa. Se não convém, não checa. E a influência desses veículos é grande. “Ah, eu li que o cara pegava dinheiro na garagem...” E o caluniado carrega o estrago para a vida toda. Para conseguir um direito de resposta leva cinco, seis anos até sair um desmentido, e desse tamanhinho escondido, ninguém vê.
Você fez Jornalismo no início dos anos 1980 e frequenta ambientes universitários. Há esperança de que as faculdades hoje estejam formando pessoas melhores?
Tem uma novíssima geração que está entrando na universidade agora e que é mais politizada do que a de pelo menos dez anos atrás. Esses movimentos de rua que aconteceram, com todos os seus problemas de indefinições, serviram para mostrar que os jovens estão interessados em política. Esse era um assunto-chave: “Ninguém quer saber de política”. Querem, sim. Só que estão descrentes, e com razão. Estão procurando novos caminhos, meio atabalhoadamente, mas estão. Então está chegando aí uma geração melhor, inclusive de jornalistas.
Mas as grandes empresas não acabam atraindo os melhores, que por sua vez logo passam a pensar com a cabeça do dono?
Tem isso. É que a gente está no meio de uma revolução (da era da informação). E é difícil entender uma revolução enquanto ela ainda está acontecendo. Não se descobriu, por exemplo, como se viabilizará financeiramente o jornalismo digital. O jornalista tem de sair a campo sempre, tem de criar e manter o público para viver daquilo. Quem é que vai financiar isso?
A oferta é grande. Por que o leitor vai pagar por algo que encontra fartamente na praça?
O mesmo cara que escreveu Cauda Longa (Chris Anderson, editor da revista Wired, a respeito do conceito de negócio que sobrevive por ter um volume muito amplo de itens a oferecer mesmo que haja poucos compradores para eles), tem um livro chamado Grátis – O Futuro dos Preços. Ele diz o seguinte: “O que não for grátis vai acabar”. Se as pessoas mal têm tempo de ler o que é de graça, por que vão pagar por algo que encontram fartamente?
Mas se o leitor não bancar um veículo de informação, o que vai garantir a sua independência?
Ninguém tem essa resposta. Se sua revista tem anúncios de incorporadoras, você vai conseguir fazer matérias críticas à especulação imobiliária? E se tiver anúncios do governo, terá liberdade de produzir informação contra o governo? Por isso, essa é uma questão inconclusa. Mas a necessidade de o jornalismo ser algo profissional não se discute.
Você acredita que os grupos que vêm promovendo protestos desde junho do ano passado possam vir a incorporar causas como a reforma política e a democratização das comunicações?
Não sei. A primeira impressão é que não. Essas pessoas foram impulsionadas por uma série de fatores, uma demanda represada. Começaram em Porto Alegre contra o aumento das tarifas e pela melhoria dos serviços de transporte público. A mobilização pelas redes torna possível que em poucas horas 20 mil pessoas estejam na praça. Era contra o aumento, depois passou a ser contras as más condições de saúde e de educação, depois “contra tudo isso que aí está”, a Copa, os governos, o PT, o PSDB, fora Globo, fora Itaú... Vários movimentos tentaram se apropriar e não conseguiram. Até a grande imprensa tentou. Então, se protesta contra muita coisa, mas a favor de quê? Aí entra a diferença entre a política e a rebeldia. Política não é só ser contra, é preciso propor. Na onda de ser contra todo mundo se une. Para ser a favor, se dividem.
O suplente do senador Demóstenes Torres (DEM-GO, cassado em julho de 2012 por envolvimento com o criminoso Carlinhos Cachoeira) foi o maior financiador de campanha dele...
Sim. E foi também o primeiro marido da mulher do Carlinhos Cachoeira. E é hoje um senador da República... Mas sou otimista. Vivemos nosso maior período de estabilidade democrática, há 25 anos temos eleições diretas para presidente, e a gente só está melhorando. Tem milhões de coisas para consertar. Só um imbecil viria a público dizer que está tudo certo. Mas a gente só está melhorando, e graças à democracia. Não há nenhum candidato competitivo com origem na direita conservadora tradicional.
Recentemente você lançou a campanha “Troll Free – Sem trolhas (pelo ar puro na rede!)”. Qual o significado disso?
Tem um texto interessante no site do filme sobre o “veneno digital”. Enquanto a internet não criar meios de conter a baixaria, o jornal e a revista de papel vão continuar existindo, porque eles não aceitam isso. No momento em que o jornalismo de internet reagir, só publicar comentários assinados, identificados, sem ofensas, vai chegar à idade adulta – por enquanto está na infância. E ainda permite que as pessoas descarreguem preconceitos, frustrações e ódio.
O que acha dos programas que misturam jornalismo com entretenimento? Dá para misturar?
É o que tem de pior. Tem uma frase na peça que diz: “Danem-se as brincadeiras com a verdade”. Não dá pra chamar isso que fazem de informação. Humilhar pessoas para ganhar audiência. É baixaria.
Você acredita que o cinema pode ser ferramenta auxiliar de educação, na falta de um jornalismo mais qualificado e de currículos que acompanhem melhor a evolução das sociedades?
Sim, tem até um projeto recém-lançado, que distribui ingressos para que alunos e professores da rede pública tenham mais acesso a filmes nacionais. Outro que determina pelo menos duas horas-aula por mês baseadas em exibição. A escola é uma instituição ultrapassada. Funciona praticamente do mesmo jeito que nos tempos de José de Alencar e Monteiro Lobato. Foi pensada num tempo em que não existia nenhuma das formas de expressão que temos hoje. Não havia rádio, televisão, cinema, internet. Todas essas formas de expressão têm de ser incorporadas. O cinema é uma excelente maneira de se discutir a vida, e pode até motivar a ler um livro.
* Colaboraram Vitor Nuzzi e Xandra Stefanel
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