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O dia depois - CONTARDO CALLIGARIS
FOLHA DE SP - 09/10
Votamos exatamente por isso: para confirmar nossa fé no poder de os indivíduos modificarem o mundo
1) Em dia de eleições, quer eu vote ou não, gosto de visitar os locais de votação. Quando tem polícia ou civilidade suficientes (e, portanto, ninguém tenta convencer ninguém, na última hora, à força de santinhos e bandeiras), o clima é festivo e calmo.
As famílias chegam juntas e, às vezes, endomingadas. Parece haver uma vontade de mostrar para as crianças o que é votar.
O clima é diferente do da missa de domingo ou de qualquer outra cerimônia religiosa --entre as cerimônias religiosas, incluo os comícios e todas as manifestações coletivas em que a massa venera, adora e louva um candidato, uma bandeira, um santo ou um santinho.
Votar talvez seja um rito e uma espécie de ato de fé. Mas o momento crucial desse rito não é coletivo --ao contrário, ele é estritamente reservado ao indivíduo. Rito de qual culto, então? E ato de fé em quê?
Pois é, ninguém (salvo ilusões e delírios) acredita que, depositando nosso voto na urna, a gente possa mudar o mundo. Mas, paradoxalmente, votamos exatamente por isso: para confirmar nossa fé no poder de os indivíduos modificarem o mundo.
Alguns dizem que votar é uma palhaçada ou, no mínimo, um fazer de conta desprezível. Outros acham que, ao contrário, é pelo voto que as vontades individuais acabam contando, porque elas se juntam e se transformam em vontades coletivas, as quais, por serem coletivas, pesariam mais e teriam o poder de mudar o mundo.
Invejo esse otimismo. Mas tendo a pensar que as vontades individuais nunca se somam e nunca produzem vontades coletivas. As vontades coletivas são entidades que nascem por conta própria e, em geral, pedem para os indivíduos desistirem do que eles desejam para serem "aceitos" numa coletividade.
Enfim, sem otimismo e sem pessimismo excessivo, prefiro pensar que votar (mesmo que não mude nada ou quase) seja uma espécie de condição sem a qual uma democracia é impraticável. Explico.
Para organizar nossa vida numa democracia, é preciso acreditar na possibilidade de o indivíduo expressar sua vontade e ser ouvido (que isso aconteça ou não, tanto faz). Votar é a expressão de uma fé necessária, um jeito de lembrar que, apesar de vivermos em sociedade, não renunciamos totalmente à nossa vontade individual.
2) Quase sempre, em dia de eleições, passo a noite esperando os resultados. Hoje, no Brasil, com as urnas eletrônicas, às 21h já se sabe quase tudo. É maravilhoso, mas sinto falta do suspense dos números parciais e de sua dolorosa interpretação noite adentro.
Hoje, quase sempre, durmo já sabendo quem ganhou ou, no caso, quem vai para o segundo turno.
3) Seja como for, que se trate do primeiro ou do segundo turno, o dia depois das eleições, para mim, sempre foi uma espécie de decepção --claro, maior no caso do segundo turno.
Acordo, tomo café e saio de casa para trabalhar --tudo normal. Não imagino que o mundo tenha mudado no meio da noite por causa do voto do dia anterior. Se houver mudanças, sei que elas levarão tempo: é necessário esperar o segundo turno e que os novos eleitos assumam. Isso, sem contar que as mudanças são lentas e progressivas, e pouco importa que os eleitos sejam proativos ou revolucionários.
Mesmo assim, no dia depois, saio de casa e olho ao redor de mim com uma certa surpresa. Tivemos eleições, mas tudo está igual a ontem, ou pior, igual a sexta passada, pois ontem era um pouco diferente, por ser domingo e, ainda por cima, domingo de eleições. As pessoas estão indo para o trabalho ou já estão aos seus postos. Tudo como sempre.
Mas o que eu estava esperando? O desespero de quem acha que perdeu? A festa descontrolada de quem acha que ganhou? Não, nada disso.
O quê, então?
Não sei, mas a sensação de que nada mudou, a sensação de que nasceu um dia igual a qualquer dia da semana passada, como num feitiço eleitoral do tempo, acaba me entristecendo.
Houve algumas eleições, ao longo da minha vida, em que, na manhã do dia depois, parecia que houvesse algo diferente no ar, como se o mundo não fosse nem pudesse mais ser o mesmo.
Lembro-me de duas: a eleição de Mitterand em 1981 e a eleição de Obama em 2008. Alguém me perguntará se não acho que foram apenas mais duas ilusões quaisquer. Responderei que não, que foram eleições que mudaram o gosto do ar que respirei naquelas manhãs (mudaram "l'air du temps", o ar do tempo, como dizem os franceses). Mas essa é outra história.
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