O ESTUPRADOR HEROÍCO E A VÍTIMA DOMESTICADA
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O ESTUPRADOR HEROÍCO E A VÍTIMA DOMESTICADA


Compare o estupro de homens por homens em Amargo Pesadelo ou Pulp Fiction com o estupro de mulheres por homens em Sob o Domínio do Medo ou Vestida para Matar. Quando o estupro tem vítimas homens, o filme não sugere de forma alguma que eles gostam. Não é bonito de se ver. Não é feito de jeito nenhum pra excitar o público masculino. Mas, no caso que algum doente se excite, a vítima (Ned Beatty) em Amargo Pesadelo é pintada como rechonchuda e chorona ― feminina, enfim. O que importa mesmo em ambas as cenas, mais em Amargo Pesadelo, menos em Pulp Fiction (porque antes da vingança há um prelúdio divertido e paródico em que Bruce Willis escolhe a arma apropriada para liquidar seus algozes), é o alívio proporcionado pelo homem que vai matar os criminosos. Criminosos que são caipiras, transgressores, kinky ― que não aprenderam que estupro socialmente aceito é o de mulheres. No mais longo de todos os estupros, em Irreversível, não há nenhuma sugestão que a Monica Bellucci está gostando, mas ainda assim é uma cena horrível, pra voyeur ver. Precisa mostrar nove intermináveis minutos de um estupro na tela? Pra quê?
Um dos trechos mais fascinantes de Against our Will (Contra a Nossa Vontade: Homens, Mulheres e Estupro), clássico feminista dos anos 70, é o capítulo 9, “O Mito do Estuprador Heroíco”. Susan Brownmiller diz que o principal horror de uma cena como a de Laranja Mecânica não é pela mulher que está sendo estuprada por um rapaz de nariz gigante que corta a roupa dela com uma tesoura, mas pelo marido que é forçado a assistir tudo. O tema de que o estupro de uma mulher é um trauma terrível pro marido/pai/filho daquela mulher (muito mais que pra ela em si) é comum. Segundo Susan, existe um “uso de estupro como uma expressão da masculinidade, indicação de mulheres como conceito de propriedade, e como um mecanismo de controle social para manter as mulheres na linha”.
E como se cria um
mito aceitável, pronto para a degustação masculina? Um exemplo: o Barba Azul original, Gilles de Rais (que lutou ao lado de Joana D'Arc), adorava sequestrar, estuprar e matar meninos. Ele fez entre 40 e 100 vítimas, e foi executado no ano de 1440. Como essa lenda não é palatável (violentar meninos? Eca!), ela foi adaptada para Barba Azul e suas Sete Mulheres. Porque barbarizar mulheres, vítimas “naturais”, tudo bem. O mesmo com Jack o Estripador, ou o Bandido da Luz Vermelha. São heróis mitológicos porque estupraram mulheres. Note como pouco se fala das vítimas de Jack, porque quem liga pra prostitutas?
Brownmiller conta como os Rolling Stones, The Doors e Jimmi Hendrix dev
em parte do seu sucesso à glorificação que fizeram com a violência sexual contra a mulher. O celebrado jornalista Hunter Thompson mitificou os motoqueiros dos Hell's Angels por isso também. É o que fazia o escritor Norman Mailer dar palestras em universidades dizendo que “um pouco de estupro faz bem para a alma do homem”.
Por outro lado, se homens estupram em nome da sua masculinidade, mulheres são estupradas em nome da sua femininidade. A mulher é uma cockteaser (quem provoca o pênis, mas, na hora H, não quer aceitá-lo). As vítimas de estupro aprendem a sentir-se culpadas. A
lguma coisa elas fizeram pra merecer isso. Para Susan, “Força, ou a ameaça da força, é o método usado contra a mulher. O uso da força é o requisito básico do comportamento masculino que ela, mulher, foi treinada desde a infância a temer. Ela não está em pé de igualdade nesta competição. A femininidade a treinou para perder”. Ao mesmo tempo, cerca de 25% dos estupros conseguem ser impedidos pelas vítimas, e há bons indícios de que isso ocorre porque as mulheres reagem. Estupro é um dos poucos crimes em que as vítimas talvez devam reagir. Obviamente, os estudos mostram que, quando o agressor está armado, ou quando há mais de um estuprador, as vítimas tendem a não reagir, na esperança que o horror termine logo e que elas saiam disso com vida.
Mas talvez uma das frases mais chocantes de Susan seja esta: “Mulheres são treinadas para serem vítimas de estupro”. Os contos de fada que ouvimos, antes mesmo de aprendermos a ler, já trasmitem um perigo abstrato. O que é Chapeuzinho Vermelho se não uma fábula de estupro? Chapeuzinho aprende a lição, a
pós ser salva pelo caçador: “Nunca mais na minha vida andarei sem rumo pela floresta”. Os Três Porquinhos derrotam o Lobo Mau sozinhos porque são machos. Já Chapeuzinho e sua avó têm que ser salvas por um outro macho.
E a Bela Adormecida? A passividade de Chapeuzinho é fichinha perto dela, que dorme durante cem anos antes de ser resgatada pelo beijo de um príncipe. Branca de Neve, Cinderela, é tudo igual. Ensinamos às nossas meninas a preciosa lição sobre o que constitui ser mulher, a essência da femininidade: ser passiva e bela. Seguindo esses preceitos básicos, o Príncipe Encantado chegará. Se o lobo chegar antes, não reaja. Com sorte um caçador viril e corajoso te salvará.
Susan afirma que aprendemos o seguinte: “Toda mulher quer ser estuprada. Nenhuma mulher pode ser estuprada contra sua vontade. Ela pediu. Se você for estuprada, relaxe e goze”. Esses são os mitos em que os homens acreditam, e que a gente ouve o tempo todo, de um jeito ou de outro (“ah, vestida assim, ela tá pedindo”, “estupros nada mais são que mulheres que
mudaram de ideia depois do ato”). Isso é tão repetido pra gente que muitas mulheres acabam acreditando.
O importante é que esses mitos que escutamos desde a infância funcionam. Serv
em para nos acomodar, para não reagirmos, para vivermos com medo, e, quando for inevitável, para sentirmos que a culpa foi nossa, não do estuprador. Pois é. Como diz Susan, “Fazer uma mulher uma participante da sua própria derrota é meia batalha ganha”.




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