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O TROTE DA UNB E A AUTONOMIA PRA NÃO LAMBER LINGUIÇA
Toda época do ano é igual: os jornais se enchem de notícias sobre trotes violentos de calouros “recepcionados” em universidades. Às vezes terminam em coma alcoólico e em morte; em geral são só humilhações sem fim. Como regra comum, quanto mais difícil entrar no curso, quanto maior o poder aquisitivo dos alunos, pior será o trote. O trote polêmico da vez é um acontecido há duas semanas na Universidade de Brasília, faculdade de Agronomia. O curso de Agronomia é conhecido por ter os trotes mais "polêmicos" (eufemismo pra violentos). Até pouco tempo usavam animais nos trotes, mas houve protestos e os alunos pararam com os bichos. Agora é só fazer calouros andarem em fila no estilo elefantinho (uma mão vai por baixo das pernas e se une à mão do colega da frente), mergulhar numa poça com legumes estragados, e – esta só para mulheres – lamber uma linguiça coberta por leite condensado, simulando sexo oral. As imagens desta “brincadeira” chegaram à Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, que pediu esclarecimentos à reitoria – afinal, o trote ocorreu dentro da universidade. Obviamente são raras as faculdades que hoje em dia concordam com os trotes. Elas até fazem campanhas entre os alunos para suavizar esse rito de passagem. Mas raramente estabelecem regras ou punições. E, sem punição, vale o legado cultural. O calouro que sofre hoje é aquele que vai aplicar amanhã a humilhação ao novo aluno. E o trote não se restringe à entrada na vida acadêmica. Lembro bem dos Jogos Abertos, eventos esportivos que ocorrem anualmente em vários estados, como SC e SP. Eu, que jogava xadrez, tinha amizade com alguns atletas do handball masculino, e os trotes eram assustadores, torturas físicas mesmo. Mas todos os novatos aceitavam numa boa porque era um pré-requisito pra se integrar à equipe e porque sabiam que ano que vem sua vingança iria chegar. Claro que o que chama a atenção no trote da linguiça da UnB é que, sempre que um trote envolve mulheres, os trotes têm conotação sexual. Como vivemos numa cultura pornificada, em que nosso cotidiano está repleto de imagens pornôs disfarçadas na mídia, as brincadeirinhas com mulheres precisam envolver sexo. Pra completar a humilhação, o cara que segurava a linguiça lambuzada na altura da cintura era o presidente do Centro Acadêmico, e ele estava vestido de mulher – com uma faixa presidencial. Olha só que mensagem linda essa imagem consegue passar ao mesmo tempo: dane-se que foi eleita a primeira presidenta, vocês servem apenas pra satisfazer o homem sexualmente. O presidente do CA não viu nada de mais. Este trecho com a entrevista do rapaz é do Estadão: “'O pessoal dentro do curso fez e não se sentiu agredido. Aí vem gente de fora e faz interpretação negativa, vendo humilhação onde não tem. Trote é integração do calouro com a universidade, não é bullying', disse. Questionado pela reportagem se teve de lamber linguiça e leite condensado ao entrar na UnB, o estudante respondeu que, quando era calouro, participou de uma 'briga de bode' numa lona de sabão”. Claro, né? Ele é homem. E é só brincadeira, não é humilhação. É apenas coincidência que mulheres ajoelhadas tenham que enfiar linguiça na boca (o bode na briga de bode provavelmente era um bicho de verdade, considerando o histórico dos trotes do curso). Alunas afirmaram que não foram obrigadas a participar, e que foi divertido. Uma caloura que participou disse que a brincadeira foi inofensiva: "Não me senti humilhada, não entendo essa repercussão. Não faz sentido o argumento de que tentamos denegrir a imagem da mulher numa brincadeira fechada de um curso. Colocar mulheres rebolando na TV todo sábado é bem pior". O próprio verbo usado pela estudante na última frase já a entrega: “colocar mulheres”. Não é que mulheres vão lá rebolar na TV ou lamber linguiça num trote porque querem. É porque alguém as coloca lá pra isso. A defesa da autonomia, da independência na decisão, do "fi-lo porque qui-lo", é a mais recorrente. A aluna fez isso porque quis, ninguém a forçou (geralmente a frase é dita assim: “Ninguém pôs uma arma na sua cabeça”, como se a gente precisasse de armas na cabeça pra fazer todas as coisas desagradáveis que fazemos diariamente). Acontece que essa autonomia é muito relativa. Primeiro que, se você é condicionado a fazer algo desde criancinha, essa autonomia já é duvidosa. Aquele negócio, né? Ninguém te força a usar prancha pra alisar o cabelo, você faz porque quer – e porque ouve desde a mais tenra idade que cabelo crespo é feio, e porque seus coleguinhas vão jogar chiclete no seu cabelo crespo, e porque uma menina negra ouve “Seu cabelo é sujo, tenho nojo de você” já aos quatro anos de idade. A maior parte das coisas que fazemos na vida não é obrigatória, mas nossa opção em se recusar a fazê-las é quase inexistente. Pra ficar num exemplo acadêmico, suponha que você, um aluno universitário, seja contra um sistema de avaliação que exija nota. É uma questão de princípios: você acha que notas depõem contra uma educação inclusiva. Então você vai e relata seus princípios primeiro ao professor da disciplina, depois à coordenação. Só que todo o sistema de avaliação pede nota. O aluno não passa de um semestre pro outro sem uma nota. Então, sim, claro, você tem toda a autonomia pra se recusar a fazer provas e entregar trabalhos. Só vai repetir todas as matérias até ser convidado a deixar a faculdade. Mas a decisão é sua! Você tem a força!É por isso que os argumentos de “participei porque quis” num caso de trote são tão frágeis. Há todo um preparo pro trote como uma tradição, um rito de passagem, uma comemoração por ter conseguido uma vaga tão disputada. Além da lavagem cerebral de anos, há a pressão social. Quem se nega a participar é careta, não quer fazer amizade com as pessoas cool do curso (os veteranos), não respeita hierarquia. Sou radicalmente contra o trote. Qualquer trote. Quer fazer campanha pra arrecadar alimentos pra uma instuição de caridade ou pra doar sangue? Não chame de trote, chame de campanha. Aí eu participo. Tô me lixando se trote é uma tradição. Há um monte de tradições ultrapassadas que nunca deveriam ter sido criadas, quanto mais persistirem no século 21 (farra do boi, extirpação do clítoris em países africanos, menino ser levado pra zona pra perder a virgindade, serviço militar obrigatório, noiva vestir branco pra simbolizar sua pureza, etc etc etc). Trote sempre se baseia no princípio da autoridade, da hierarquia, do “olha quem manda aqui”. É uma demonstração de poder por parte de quem pode mandar, e de submissão por parte de quem deve obedecer. Adicione à mistura o ingrediente de gênero – o presidente do Centro Acadêmico segurando uma lingüiça lambuzada pra uma aluna ajoelhada chupar – e as coisas começam a ficar um tantinho óbvias demais.
Leia aqui a resposta de uma veterana da Agronomia defendendo o trote. E aqui algumas provas de como essa "brincadeira" é indefensável.
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