OLHA QUEM MANDA AQUI
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OLHA QUEM MANDA AQUI


Suzanne Eggins, em sua Introdução à Linguística Sistêmico-Funcional, nos lembra que, quando começamos uma conversa, qualquer coisa, mesmo que seja um “oi”, estamos esperando uma atitude da outra pessoa. Que a pessoa nos ignore também é uma resposta! Toda vez que alguém inicia uma interação, ela põe a outra pessoa na posição de se a pessoa quer ou não interagir. Ou seja, quando alguém determina o seu papel, determina também o da outra pessoa. Ao ler isso, só pude pensar nas cantadas de rua.
Por exemplo, quando um cara grosseirão fala alguma besteira pra uma mulher na rua, qual a reação que ele espera? Duvido que um carinha que grite “Você é a nora que minha mãe pediu a Deus” espere que a moça se vire e diga “Que legal! Você também é o genro que minha mãe pediu. Me leva pra conhecer a sua mãe!”. Será que ele espera que a moça diga: “Ok, meu telefone é tal, me liga”? Em geral ele não espera nem um “Obrigada”, e muito menos um “Vai pentear macaco” (minhas gírias decididamente são do século passado). Ele espera que a mulher permaneça calada, quiçá fique encabulada, quiçá enrubesça, e siga andando. Se a mulher para e fala alguma coisa, ela está saindo do seu papel de submissão, de objeto pra ser visto, admirado e avaliado ― e quem avalia está na posição de poder, sempre. O cara fica perdido, não sabe bem como seguir com a interação que iniciou. Às vezes responde com violência, mas quase sempre finge que não é com ele.
Os linguistas acreditam que o maior indicador de poder é quem fica sendo a pessoa que fala, e por quanto tempo. E quem começa. Note que, no caso do idiota que fala gracinha pra uma mulher na rua, o poder é todo dele. Ele que inicia, ele que fala. Talvez por isso que um carinha fique tão furioso quando uma mulher o manda passear: ela está tirando seu poder, deixando de ser um objeto pra se tornar um ser com autonomia de decisão.
Por coincidência, bem quando escrevia este texto, recebi um email de uma leitora de 21 anos de Jundiaí, SP, que reproduzo com sua autorização: “Eu estava indo trabalhar, descendo a rua de casa, e passaram dois moleques de no máximo 18 anos, e começaram a fazer psiu. Eu ignorei, e o cara começou a berrar do outro lado da rua: 'não vai olhar não, gostosa? Vamos lá em casa...' Me subiu o sangue... e olha que sou bem tranquila. Mostrei apenas o dedo do meio pra ele, e ele com a maior indignação do mundo começou a me xingar de horrores,de p*ta pra baixo... Tipo assim, ele acha que é um direito dele invadir verbalmente uma pessoa que está passando na rua, e ficou claro que o motivo da raiva dele foi o fato de uma mulher ter se manifestado contra a falta de educação dele. Sabe aquela coisa de se esperar que a mulher aguente todo tipo de violência e desrespeito quietinha, porque se não for pra eu virar e falar: 'Uau gatão! Isso era tudo que eu queria ouvir, vamos lá na sua casa, já que eu estava na vitrine mesmo!', deveria ficar quieta e engolir. Será mesmo que esses trogloditas acham que alguma mulher se sente lisonjeada com essas cantadinhas na rua? Eles não percebem que isso é INVASÃO?”.
Perceba como funciona o que a leitora descreve, que no fundo é a busca pelo poder: o “moleque” inicia a interação, e exige uma reposta. Não permite ser ignorado. Como a resposta não é a que ele gostaria, ele reage com agressividade. Assim, tenta se manter no poder.
Mas, respondendo à pergunta da leitora, acho que os homens percebem sim que isso é uma invasão. São treinados pra dizer coisas pra mulheres na rua e “avaliar o material”. Mulheres são treinadas pra baixar os olhos, não responder, e ter medo (obviamente não estou falando de paquera).
Sabe um comercial de bronzeador que eu odeio? Mostra um menininho olhando fixo pra uma garotinha que passa na praia rebolando, enquanto o guri ao lado dela põe seu braço nas suas costas, em posição de posse. E a locução é “Viu? Criança aprende rápido!”. Sem dúvida que aprende. A menina aprende a rebolar, o menino aprende a secar, o outro aprende que mulher sozinha é de ninguém, ou de todos, e portanto precisa ser de um homem só. Quantas vezes já vimos comerciais e filmes onde o menino aprende (geralmente através do pai) a cantar uma estranha na rua, e isso é visto como algo totalmente positivo? Quase nunca temos o ponto de vista da menina, ou a aprendizagem que ela recebe sobre como lidar com a cantada. Ah, e é tão ingênuo quem pensa que meninas de dez anos só recebem cantadas de meninos de dez anos...
Acontece que este é um claro processo de dominação, de manter o status quo. Menina aprende desde cedo que o mundo é uma selva, que é um perigo sair na rua, e que ela deve se ater ao ambiente doméstico, ou no mínimo descolar um macho para protegê-la... de outros machos. A gente vive sob o risco iminente de um estupro. A grosseria na rua (que, inclusive, muitas vezes envolve passar a mão) faz parte desse terrorismo. É um jeito do homem lembrar quem manda, quem fala e quem cala, quem avalia e quem é avaliada.
Ao nos mantermos caladas, deixamos que eles perpetuem esse poder.




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