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ENTREVISTA SOBRE ASSÉDIO NAS RUAS
Como estou sem tempo nenhum pra escrever, e muita gente tem pedido minha opinião sobre um dos assuntos do momento -- a campanha "Chega de Fiu-fiu" -- vou colocar aqui uma entrevista que dei há dois dias.
A campanha, do blog Think Olga, da jornalista Juliana de Faria, é pelo fim do assédio sexual nas ruas, e resultou numa pesquisa, respondida por 7,762 participantes. A pesquisa não é científica, mas revelou que 99,6% dxs participantes disseram já ter sido assediadas. E, mais importante ainda, 83% responderam não à pergunta "Você acha que ouvir cantada é algo legal?".
A pesquisa vem sendo muito divulgada e discutida, e despertou o interesse da grande mídia. Isso é ótimo, pois mostra que temas feministas definitivamente entraram na pauta. E, se entraram, é porque têm atraído grande interesse. Existe demanda.
Imagino que, por eu já ter escrito sobre grosserias nas ruas diversas vezes, alguns veículos me procuraram. As perguntas que Júlia Rabahie, da Rede Brasil Atual, me enviou anteontem, foram muito boas. Minhas respostas, devido à crônica falta de tempo, estão longe do ideal, mas pretendo escrever mais sobre assédios. Eis a entrevista.
Júlia: Muitos comentários que já ouvi esses dias, de pessoas que não são necessariamente machistas (ou não pensam que são), é que estamos vivendo um tempo de “patrulhamento”, e que há um perigo de ser criada, assim, uma cartilha, do que pode ou não pode ser feito/dito em relação às mulheres. O que pensa disso?
Eu: Acho que já temos uma “cartilha” do que pode ou não pode ser feito/dito em relação às mulheres, e, mais ainda, em relação ao que as mulheres podem ou não dizer, não? O “patrulhamento” de que essas pessoas reclamam é a mudança de ideias. Engraçado como eu ouço todo dia que assédio nas ruas é elogio, que é uma maravilha pra mulher, que faz bem pro nosso ego, que toda mulher adora –- mas isso não é visto como “patrulhamento” nem ideologia. Aí uma pesquisa com 7,700 participantes diz que o assédio não é bacana, e agora temos um patrulhamento.
Tendo como base a pergunta acima, como distinguir o assédio daquilo que podemos chamar de uma manifestação de interesse saudável? Por exemplo, quando uma pessoa se interessa por outra na rua e quer começar a conversar. Claro que isso é subjetivo e vai depender de casos específicos, mas como fazer então para prevenir este assédio com as “cantadas”?
Creio que a pessoa, vamos dizer, o cara que se interessa por outra pessoa na rua, tem que estar atento a alguns detalhes: por exemplo, a pessoa com quem ele quer falar está com pressa? Houve algum tipo de contato visual, alguma troca de olhares, algo que manifestasse que a pessoa quer se comunicar com ele? Porque, se não houve, a chance daquela pessoa te ignorar é muito grande. Além do mais, não é só ele, o mundo não gira em torno dele. Pode ser que aquela pessoa já ouviu muita besteira naquele dia. Ou seja, um só babaca queima o filme de muitos homens. Mas acho também que existe diferença entre as “cantadas”. Dizer um “Oi, tudo bem?” é bem diferente de um “Quero te chupar todinha”.
Como definir o que é o assédio nas ruas?
Eu chamo esse assédio que não é nada bem-vindo de grosserias. Porque não são cantadas, e definitivamente não são elogios. São demonstrações de poder. Então essas grosserias, que quase sempre têm cunho sexual e muitas vezes são acompanhadas de passadas de mão, são uma espécie de terrorismo sexual. Servem para aterrorizar as mulheres e lembrá-las que o espaço público na verdade não é público, pois as mulheres deveriam estar em casa, ou acompanhadas de um homem, para que não sejam assediadas.
Estas “cantadas” são um problema cultural, que faz a sociedade como um todo, em especial os homens, pensarem as mulheres como algo pertencente ao espaço público e digno de admiração/comentários?
Sim, são um problema cultural. Devem ser vistas como problema porque as mulheres, que são as maiores afetadas, veem as grosserias dessa forma. Mas a ideia de quem fala essas grosserias não é manifestar admiração, e sim mostrar um julgamento. Quem julga? Quem está em posição de poder. Portanto, é uma forma de homens de todas as classes sociais mostrarem que, na questão de gênero, são eles quem mandam, porque eles que têm o poder de avaliar. É opressor.
Esse tipo de “direito” que muitos julgam ter de mexer com mulheres no espaço público faz parte da cultura do estupro?
Sim, faz. Porque muitas vezes essas grosserias verbais são acompanhadas de toques físicos. É terrorismo sexual. É uma tentativa de manter as mulheres numa posição submissa. E é fácil ver como não é admiração. Basta uma mulher responder à grosseria que muitos sujeitos, que não aceitam um não como resposta, ficam violentos e passam a xingá-la, ou até a agredi-la fisicamente.
Como combater o estereótipo da feminista chata/mal comida/intolerante/feia? Muitos classificam a divulgação da pesquisa como “coisa de feminista chata”.
Essas ofensas de “feminista chata/mal comida/intolerante/feia” são idênticas às que eram dirigidas às sufragistas. São ofensas que já têm 170 anos, o que mostra a total falta de criatividade dos machistas. As mulheres que exigiram o direito a voto também foram tachadas de inconvenientes. Mas as mulheres que participaram da pesquisa do Think Olga eram feministas? Todas as 7,700? Ou eram simplesmente mulheres que falaram o que muita gente não quer ouvir -– que mulher não gosta de ser assediada na rua?
Você percebe um movimento maior no sentido das mulheres perceberem o machismo nestes fatos cotidianos e se revoltarem contra isso? Por quê?
Sim, percebo. As coisas mudam, muito mais lentamente do que eu gostaria, mas mudam. Pouco a pouco, as pessoas vão se dando conta de algumas coisas que antes passavam batidas. A força da internet é grande, e o feminismo finalmente pode ser divulgado –- o que não acontece na grande mídia.
De acordo com a pesquisa, 17% das mulheres que participaram acham este tipo de “cantada” legal. Como você entende isso?
As mulheres (e os homens) são muito diferentes entre si. Algumas gostam das “cantadas”. A maioria não. Mas o que ouvimos sempre é que todas nós adoramos. E uma pesquisa assim mostra justamente o contrário: a vasta maioria não aprova essas grosserias. Quem gosta poderia se lembrar que não são apenas mulheres adultas que são assediadas. São meninas de nove, dez anos. É um elogio pra uma criança ter que ouvir “Ô lá em casa”?
Você classifica o assédio como uma violência contra a mulher? Por quê?
Eu acho que depende do assédio. Pessoalmente, eu não me zango com um cara que passa por mim e diz “Que olhos lindos!” E se um total desconhecido me diz um “Bom dia”, eu talvez até responda com um “Bom dia”. Mas isso é bem diferente de um “Boa noite” numa rua escura e deserta. Creio que a maior parte das mulheres veria esse segundo caso como algo ameaçador. E ameaças de violência são violência.
Neste sentido, são necessárias políticas públicas neste combate?
Não sei se políticas públicas seriam de fato eficientes, porque faltaria fiscalização. O que precisamos é discutir o assunto. É mudar a cultura. É tornar grosserias na rua não algo culturalmente incentivado, mas inaceitável. Algo que faça as pessoas olharem feio pra quem faz algo assim. Imagino que a maior parte dos homens reprova uma grosseria dessas dirigida a uma menina de dez anos. Imagino que a maior parte reprovaria se o alvo fosse a irmã dele, a mãe, a esposa, a filha. Então esse mesmo homem deve refletir e procurar entender que grosseria não é elogio. É tentar se colocar no lugar das mulheres. E, se ele realmente for incapaz de empatia, que ele entenda que grosserias não seduzem ninguém. Muito pelo contrário, elas queimam o filme.
Além de campanhas, que outras ações poderiam mudar este contexto?
Conversas, bate-papos, debates, discussões em escolas... E campanhas na grande mídia também teriam um grande potencial para mudar a mente das pessoas. Infelizmente, a grande mídia prefere fazer um quadro “humorístico” em que uma mulher é bolinada no transporte público e instruída a aproveitar.
À medida que o debate se democratiza, traz sujeitos que antes não estavam envolvidos para debaterem -– o que é ótimo. Mas alguns movimentos feministas alertam para o perigo de trazer uma discussão superficial, que não questiona as bases do machismo e da cultura do estupro em si, como o patriarcado e até o capitalismo. Você concorda com isso?
Não, não concordo. O importante é mudar a cultura. Se o que atingir as pessoas e fazer com que elas pensem e mudem de atitude é um discurso aparentemente superficial, que seja. O primeiro passo é fazê-las ouvir e refletir. Se elas ouvem, elas podem querer questionar mais a fundo e debater as causas estruturais.
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