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Revogações tácitas e privilégios explícitos - LUIZ CARLOS DOS SANTOS GONÇALVES
FOLHA DE SP - 14/09
É para poucos o direito de ser processado e julgado pela mais alta corte do país, o Supremo Tribunal Federal. O foro por prerrogativa de função --ou foro privilegiado-- não foi extinto nem mesmo pela democrática Constituição de 1988. Isso não significa que seja bom.
Nossa República será mais igualitária no dia em que todos os cidadãos, quando chamados a responder por seus atos, o façam diante de juízos fixados de acordo com as regras comuns de competência.
Talvez esses foros sobrevivam em face da arraigada esperança de que tribunais sejam mais próximos, compreensivos ou amenos para com pessoas de certos estamentos do que esses temíveis juízes de primeiro grau... Afinal, é recente essa moda de condenar réus em foros privilegiados.
Esse contexto ajuda a explicar a insólita situação do STF. Enquanto milhares de pessoas veem-se processadas e condenadas por juízos comuns --portanto, pela decisão de um solitário julgador-- os 11 ministros de nossa alta corte se debruçam, por meses a fio, com as minudências de um único processo crime. E se trata da corte que tem o papel de dirimir as mais relevantes questões constitucionais do país.
Oxalá cada réu em nosso país, independentemente do crime pelo qual é acusado ou de suas condições econômicas, tenha a mesma oportunidade de ampla e efetiva defesa que tiveram os réus da ação penal 470.
Sobre a questão dos embargos infringentes, não nos convencem argumentos de que os blocos de opinião se formaram por razões de preferência política. Tampouco imaginamos que a admissão do recurso implique, automaticamente, em benefício para os até aqui condenados.
Há razões boas para aceitar ou para recusar o recurso. Para quem os admite, trata-se de um benefício pró réu. O recurso está previsto no artigo 333 do regimento do Supremo. Embora seu cabimento comum seja para os processos julgados por turmas fracionárias de tribunais, no Supremo funcionaria para mitigar a ausência de um recurso hierárquico, ou seja, uma irresignação levada a um outro grau de jurisdição.
Quem não admite o cabimento dos embargos começa notando que regimentos não podem prevalecer diante de uma lei. E existe lei sobre o tema. É a lei nº 8.038/90. Seu silêncio sobre os embargos é eloquente.
Não se trata de uma lacuna legal, mas da constatação de que os embargos infringentes, pensados para decisões de turmas fracionárias de tribunais, não fazem sentido se a decisão já é, desde logo, tomada pelo conjunto dos julgadores.
Em segundo lugar, quem defende a não admissão dos embargos observa que se trata de uma desconfiança seletiva nos julgamentos majoritários: numa ação originária, eles não bastam; num júri, parecem suficientes. Basta um único voto a mais e a decisão estará tomada.
Sem falar do tempo que passa, de outros casos que não se julga...
Todo o problema surgiu de um erro cometido pelo Supremo, talvez o maior que se lhe possa imputar nesse julgamento: ele não entendeu necessário reformular expressamente seu regimento interno. Confiou que, diante da lei nº 8.038/90, a revogação tácita de parte dele seria facilmente reconhecida. Não foi.
Uma oportunidade surgiu com a emenda constitucional nº 45, que assegurou o direito fundamental à razoável duração do processo e aos meios que garantam a celeridade de sua tramitação. A emenda não recebeu dispositivos incongruentes como os embargos infringentes, que determinam que a corte examine, de novo, ela própria, sua própria decisão. Infelizmente, também aqui foi uma revogação tácita.
Num sistema judicial no qual privilégios --como o foro por prerrogativa de função e os recursos infindáveis-- encontram-se escritos com todas as letras, a corte não deveria ter confiado em revogações tácitas.
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