Geral
Uma defesa da hipocrisia
João Pereira Coutinho, Folha de SP
Ironias da vida: falamos com uma pessoa de tendências progressistas sobre a liberalização das drogas. Ela concorda: as políticas repressivas falharam. Só a liberalização diminui o tráfico.
E, além disso, cada um sabe de si na forma como usa e abusa da própria liberdade: quem sou eu para impor a terceiros os meus pontos de vista moralistas e repressivos?
Calma, camaradas. Tanta violência retórica não se justifica: já escrevi repetidas vezes que o meu "conservadorismo de costumes" só se aplica a matérias de vida ou morte.
A liberdade individual termina quando começa a liberdade dos outros? Deploro esse clichê.
Melhor dizer que a liberdade individual termina quando está em causa uma vida humana --a do próprio ou a de terceiros. Aborto, eutanásia, suicídio assistido, pena de morte-- não contem comigo para a jornada.
Mas contem comigo para o resto. E o resto, lamento informar, inclui a prostituição também.
Sim, eu sei: idealmente, o amor não deveria estar à venda, embora seja sempre possível contar a piada de que a única diferença entre sexo pago e sexo grátis é que sexo grátis, normalmente, fica mais caro.
Aqui, o meu interlocutor progressista hesita. Se mudamos o gênero da palavra e escrevemos "interlocutora", o feminismo vem à tona e decide o assunto: a prostituição degrada as mulheres, alimenta o tráfico de seres humanos e deve ser reprimida pelas autoridades.
Um bom exemplo dessa atitude radical está na França. Leio nos jornais que o governo progressista de François Hollande tem um Ministério dos Direitos das Mulheres.
E a ministra, Najat Vallaud-Belkacem, quer acabar com a prostituição no país. A sra. Vallaud-Belkacem, manifestamente, nunca leu Maupassant ou Flaubert, escritores que construíram o melhor da literatura francesa no conforto dos bordéis.
Para a ministra, é preciso um plano de ação contra o negócio, desmantelando redes de tráfico e proxenetismo. Os clientes também serão duramente penalizados.
Perante essa deriva persecutória, só me resta dizer: "bonne chance, madame". Mas também acrescento que a ambição governamental será inútil e, além disso, abusiva.
Começa por ser abusiva porque o governo francês confunde tudo: tráfico de seres humanos com a decisão autônoma de alguém vender o corpo para fins sexuais.
As duas situações não habitam o mesmo plano moral. Traficar ou escravizar alguém é um crime contra a liberdade de terceiros. Vender o corpo para fins sexuais pode ser uma degradação da condição humana do sujeito --ou, para usar a linguagem kantiana, uma forma de sermos tratados como um meio, não como um fim.
Mas essa decisão, moralmente condenável, não constitui uma ameaça para ninguém. A minha vida e mesmo a minha liberdade não estão ameaçadas se a vizinha do lado gosta de receber cavalheiros ao serão.
Por outro lado, a ambição do governo francês será também inútil. A prostituição não é apenas a mais velha profissão do mundo. Como dizia Nelson Rodrigues, com sua insuperável sabedoria sobre a natureza humana, é também a mais velha vocação.
E nem todas as leis serão capazes de alterar a realidade: enquanto houver gente disposta a vender e a comprar sexo, haverá um mercado para o negócio.
A única diferença é que, em países que fizeram da proibição uma cruzada, esse mercado funciona na clandestinidade, desprotegendo ainda mais as mulheres que o Estado imagina proteger.
Nada disso significa, obviamente, que cabe ao Estado regular a atividade como se a prostituição fosse apenas mais um negócio entre vários. Ou, pior ainda, que o Estado pode legitimamente lucrar com ele, taxando os seus proventos. O Estado não deve ser um proxeneta coletivo.
Tolerar a prostituição significa apenas isso: tolerar. O fato de algo ser moralmente condenável não significa que deva ser legalmente proibido.
A hipocrisia, como dizia um francês ilustre, pode ser a homenagem que o vício presta à virtude. Mas, sem essa homenagem, as sociedades humanas seriam lugares inóspitos para habitar.
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