"EU FUI ESTUPRADA?"
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"EU FUI ESTUPRADA?"


B. me enviou este relato. E eu sei que o tema é polêmico e que vai me render algumas pedradas, mas pedi permissão para publicá-lo mesmo assim.

Email da B: Há anos uma dúvida me intriga muito e tenho certeza de que muitas mulheres também têm a mesma dúvida.
É muito fácil saber quando um estupro é um estupro em casos extremos: quando há violência, recusa, reluta, choro, grito e dor. Mas em casos menos extremos, como a gente sabe? Como a gente classifica? Existe uma gradação que torna alguns estupros mais "aceitáveis" do que outros? Eu fui estuprada?
Há cinco anos, aproximadamente, no dia em que voltei ao Brasil depois de ter morado um tempo fora, um amigo meu me chamou para ir a sua casa para tomarmos uma cerveja. Aceitei, é claro. Ainda não tinha visto nenhum amigo desde que havia voltado e estava com saudade deles.
Já na casa, conversa vai conversa vem, cerveja vai cerveja vem, ele começa a me beijar. Eu jamais teria cogitado ficar com ele, porque ele era um cara com uma aparência meio esquisitona e eu jamais tinha sentido atração por ele. Eu virei a cara e disse que isso era muito estranho. Ele puxou de novo meu rosto, disse que "estranho é bom" e tornou a me beijar. Ele então me encaminhou para o quarto e eu fui, meio relutante. Eu não sabia o que pensar da situação; eu estava bêbada e não sabia se queria isso ou não, então meio que me deixei ser levada pela situação, embora eu transparecesse estar desconfortável e hesitante. Ele me deitou na cama e começou a tirar minha roupa. Eu tapava meus olhos com as mãos e ficava repetindo que era muito estranho, mas não fazia nada para fazer com que ele parasse. E eu tampouco incentivava o sexo ou demonstrava tesão. Tenho a impressão de que eu dizia "não, não", às vezes, com os olhos tapados, mas já não tenho mais tanta certeza disso. Depois que acabou, eu coloquei minha roupa e fui para a casa. Chorei um pouco no caminho e me senti abusada.
Eu fui de fato abusada?
Embora eu saiba que ele não agiu da forma mais correta, eu também sei que ele não fez por mal. Eu sei que se eu tivesse dito um "não" mais categórico ele teria parado, porque ele é uma das pessoas mais gentis e respeitosas e queridas e prestativas que conheço. Talvez se eu não tivesse bebido eu teria dito "não" de início e ele teria respeitado. Talvez se ele não tivesse bebido ele teria levado em conta meu claro desconforto com a situação e teria parado. Talvez, por ser uma pessoa socialmente diferente e por provavelmente ter tido poucas experiências sexuais, ele tenha agido mal por não saber como agir. Por não saber o que, nessas horas, era errado. Isso torna o ato dele mais aceitável? Sempre penso que a culpa é minha, que eu deixei acontecer, que ele achava que eu estava querendo que acontecesse. Será que ele achava isso mesmo? Será que ele se aproveitou da minha falta de ação na hora e propositalmente não impediu o sexo, embora percebesse que eu não queria? Ou ele não percebeu que eu não queria? Nunca sei exatamente o que achar disso tudo.
Ficamos mais ou menos um ano sem nos falar, e depois aos poucos voltamos a ser amigos e hoje somos grandes amigos de novo. Até ficamos de novo por pouco tempo, no ano passado, e eu, enquanto ficávamos, pela primeira vez toquei no assunto daquela noite, mas sem mostrar que eu o culpava de abuso nem nada parecido. Ele disse "naquele dia eu fiz tudo errado, tudo errado...".
Eu deveria ter sido mais dura com ele? É muito estranho que eu tenha voltado a falar com ele sem guardar rancor? Eu deveria guardar rancor? Eu deveria sentir nojo dele? Eu deveria tê-lo denunciado? Teria sido "overreaction" se eu o tivesse denunciado? É um sinal de submissão o fato de eu achar que ele não tem culpa de nada porque eu sei que ele não tinha a intenção de me abusar, embora tenha, de certa forma, me abusado? Devo soar como uma daquelas mulheres submissas e apaixonadas que encobertam violência e abuso domésticos. Mas eu realmente não desconfio do caráter desse meu amigo. Ele é uma boa pessoa e acho que o que aconteceu foi só um erro.
Mas quão grave é esse erro?
Como eu deveria ter reagido?
Como posso categorizar esse acontecido?
Me soa duro demais dizer que foi estupro. Mas será que foi? Se não foi, foi o quê?
Essa situação me deixou extremamente confusa. E imagino que essa confusão deva estar presente na cabeça de muitas, muitas mulheres.
Às vezes me sinto uma idiota por pensar que foi estupro; às vezes me sinto uma idiota por pensar que não foi estupro.
Como é que reconhecemos um estupro, nesses casos menos extremos?

Minha resposta: Bom, em primeiro lugar quero dizer que sinto muito por vc estar passando por essas angústias todas.
Em segundo lugar, é muito difícil eu dizer se o que aconteceu entre vc e seu amigo foi estupro ou não. Se nem vc sabe!
Todo estupro é inaceitável, é claro. Mas tem aqueles (que geralmente são os únicos que são punidos, e mesmo assim sempre se duvida da vítima) em que resta pouca dúvida. É quando o estuprador segue o clichê de "desconhecido numa rua deserta à noite". Se há muita violência física, de ferir a vítima, as pessoas tendem a crer que houve estupro. 
Em quase todos os outros casos, a maior parte das pessoas costuma achar que não. E na maior parte dos casos o estuprador é conhecido/amigo/familiar etc. E acontece em casa, não na rua! A maior parte desses estupros não é sequer denunciada. E me diga se uma violência direta, ou a ameaça dessa violência física, é necessariamente pior que uma ameaça do tipo "se vc não transar comigo vou procurar a sua irmã"? Ou "se vc não deixar eu te mato", vindo de um conhecido?
Eu acho que "meio que ser levada pela situação" não é estupro. Estupro é sexo sem consentimento. Vc não consentiu, mas vc também não recusou. Vc não disse "não" categoricamente, e vc não tem certeza se disse "não, não". Acho que seu amigo foi um babaca por não levar um "não" tímido ou um "isso é muito estranho" mais a sério, e acho que muitos homens fazem isso (e são ensinados a fazer), mas não que seja necessariamente estupro.
Uns dois ou três anos atrás aparecia uma comentarista meio chatinha no meu blog. A gente discordava sobre tudo. Em geral, ela era muito mais "suave" no seu feminismo do que eu, mas, quando o assunto era sexo, ela era categórica: ela achava que fazer sexo quando não se queria era estupro. Tá, parece óbvio. Concordo. Mas esse "não querer" é relativo, não acha? Por exemplo, vc tá com seu namorado, e ele quer transar, e vc não. Mas ele vai fazendo uns carinhos e vc, mesmo sem estar a fim, acaba transando com ele. Eu não consideraria isso estupro de jeito nenhum. Mas essa minha leitora considerava.
Eu já fiz sexo algumas vezes sem estar com vontade. Mas ainda assim foi consentido. Pra mim é diferente transar sem vontade de transar sem consentimento. Quando transei sem estar muito a fim, fiz pra agradar. A gente (qualquer um) faz um monte de coisa pra agradar na vida, e muitas dessas coisas a gente faz sem vontade. Meu marido também já transou comigo sem ele estar com muita vontade. Não consigo ver nada disso como violência.
E quanto a transar com caras que eu nunca pensei em transar, mas aí ele começou e eu fui deixando pra ver como seria (mesmo achando estranho), bom, já aconteceu algumas vezes também. Se bem que eu não disse "não" e nem estava bêbada... Sabia muito bem o que estava acontecendo, mas não tinha certeza mesmo se queria transar com aquele cara ou não. E fui deixando. E nesses casos quase sempre o sexo é muito ruim, não é? Pelo que me lembro...
Eu concordo com todos os "talvez" que vc colocou naquele parágrafo. Talvez se vc tivesse dito um não mais categórico, seu amigo teria parado. Talvez se ele não tivesse bebido, ele levaria o seu suave não mais a sério. Isso não torna o comportamento dele mais aceitável (continuo achando que ele agiu feito um idiota insensível e egoísta naquela noite -- o ideal seria que no primeiro "não", na primeira hesitação, a pessoa parasse na hora), mas tampouco faz dele um estuprador.
Eu acho que vc mesma dá a resposta quando diz "Eu sei que se eu tivesse dito um 'não' mais categórico ele teria parado, porque ele é uma das pessoas mais gentis e respeitosas e queridas e prestativas que conheço". Se vc sabe disso, tem certeza disso, vc tem a sua resposta.
Se vc deveria tê-lo denunciado, mesmo com tantas dúvidas? NÃO. Mesmo que a enorme maioria das acusações de estupro não gere condenações, estupro é uma acusação seríssima. Se vc tem tantas dúvidas sobre o que aconteceu e sobre o que vc queria e sobre o que vc fez e sobre o que ele fez, vc fez bem em não denunciá-lo.
Eu acho que vc foi muito generosa em não guardar rancor nem ódio dele. Mas acho bom. Se vc guardasse rancor dele, vc provavelmente guardaria rancor de vc também, por não tê-lo denunciado, por achar que a culpa foi sua... Essa parece ser uma amizade importante pra vc. Não estou dizendo, de jeito nenhum, que se vc tivesse certeza que foi estupro, vc não deveria denunciá-lo pra salvar a amizade. Num caso desses dane-se a amizade, ele tem que ser denunciado sim! Mas esse não parece ser o caso que vc narrou.
Eu não sou a dona da verdade, então não posso responder categoricamente à nenhuma das suas perguntas. Mas não acho que vc esteja sendo submissa por perdoá-lo e por não guardar rancor. E não existe uma reação certa. Existem muitas reações. Se isso acontecesse novamente, com esse mesmo amigo, vc muito provavelmente reagiria diferente, não? Ou não dá pra saber? Ou depende do dia? Se algo parecido acontecesse com outro amigo, vc também agiria diferente. Mas não existe uma forma correta de agir. Quer dizer, talvez o seu amigo deva saber que a forma como ele agiu não foi correta de jeito nenhum. Mas, como eu disse, nem por isso foi estupro.
Querida, acho que vc não tem que ficar se martirizando. Faz muito tempo (cinco anos, né) que isso aconteceu, vc não tem certeza de nada, vc e o cara são amigos, vc acha que ele é um cara legal... Na dúvida, considere que não foi estupro. E se não foi estupro, foi o quê, vc pergunta? Não sei, uma noite péssima? Uma transa que vc não tinha vontade nem sentiu prazer? Só sexo ruim, mas sem nada de violência? Acho que é forte demais vc marcar isso como estupro e ter que carregar esse fardo. Porque vc tem muito mais dúvidas do que certezas!
Se vc quiser falar com seu amigo sobre isso, porque isso ainda te incomoda (e dá pra ver que te incomoda), tente conversar com ele. Sem brigas, sem acusações, só tentando explicar pra ele as suas dúvidas e porque isso te perturba e porque vc acha que ele agiu errado naquela noite. E, se vc quer desculpas, exija desculpas. Ele dizer que "fez tudo errado" não é um pedido de desculpas.
Não tem uma fórmula certa pra reconhecer se foi estupro num caso assim. Vai muito da pessoa. É a pessoa que se sente mal que tem que manifestar o tamanho do seu sofrimento. E, baseado nisso, denunciar ou não seu amigo. Claro que a gente aprende que casos assim não são estupro, e a gente faz um esforço danado pra se convencer disso, e muitas vezes, anos mais tarde, a gente acha que foi, sim. É uma reação bastante comum. Mas vc não concluiu nada. 
Lembre-se que estupro tem mais a ver com demonstração de poder que com tesão. O cara que estupra raramente é um cara que não consegue controlar seu desejo; é um cara que quer usar sexo pra mostrar quem manda, pra humilhar. Pelo que vc narra, essa não parece ter sido a atitude do seu amigo.
Não sei se este email gigantesco mais te ajuda ou atrapalha. Mas espero que vc chegue as suas próprias conclusões, se é que já não chegou a elas ainda.

B responde: Acho que você tem toda a razão. Não foi um estupro. Foi uma transa ruim, numa noite ruim, numa situação de vulnerabilidade emocional. Pior do que qualquer outra experiência sexual que eu tive e que pudesse ter sido caracterizada da mesma forma, isso foi. Mas não foi estupro. E eu acho que já estava convencida disso antes mesmo de você me responder (como você mesma já notou), mas acho que eu precisava ouvir isso de uma pessoa que não tivesse tido um envolvimento tão pessoal quanto o meu. Ouvir isso de uma pessoa imparcial me dá mais segurança sobre meu julgamento. Porque estou cansada de saber de histórias de estupro que são amenizadas pelas próprias vítimas por causa do seu envolvimento com o estuprador. E tinha medo de achar que talvez eu fosse uma dessas pessoas. Medo de achar que era só eu contar o acontecido a uma pessoa qualquer, mesmo com todos os meus "talvez", que essa pessoa qualquer poderia tê-lo rotulado facilmente como um estupro, embora eu mesma não me convencesse disso. Não foi o caso. Fico feliz por isso, embora eu fique triste por perceber que carreguei essa dúvida por mais tempo do que eu precisava.
Se tem uma coisa que qualquer mulher numa situação semelhante tem que fazer é dividir isso com alguém. Relatar. Perguntar. Ouvir. Abrir-se sem manipular os fatos por proteção. Dá mais forma ao acontecido e às vezes resolve coisas que, sozinha, a gente não resolve nunca.




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