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"O GRANDE GANHO É PODER ESCOLHER"
A F. me mandou este relato quando comprou meu livrinho. E, como recebo muitos emails do tipo "Posso ser feminista?..." (insira aqui o que você quiser. Exemplo: exercendo a profissão de maquiadora?, gostando de BDSM?, estando de dieta?, sendo fã de Margaret Thatcher?, se posicionando contra o aborto?, sendo de direita -- pras últimas três perguntas eu diria "tá difícil, hein, amiga"), achei que este seria um ótimo exemplo pra se responder. A F. escreveu: "Sou casada, tenho 30 anos, e vim morar numa capital de um país sul-americano de língua espanhola devido ao trabalho do marido.
Sou fonoaudióloga e fiz mestrado numa instituição de renome. Portanto, eu tinha um futuro profissional promissor aos olhos de todas as pessoas que me conheciam no Brasil. O único porém é que eu nunca fui apaixonada pelo meu trabalho. Constantemente eu me sentia infeliz e incompleta -- trabalhei e estudei muito, mas me sentia insegura apesar de tanto esforço. Quando meu marido recebeu a proposta pra vir morar aqui, sabíamos que teríamos que nos decidir, pois o contrato dele aqui é por tempo indeterminado. Alguém teria que ceder se quiséssemos ficar juntos, e eu decidi que viria pra cá.
Eu estava feliz com a minha decisão, minha família também. Mas foi (e ainda é) muito difícil encarar 'a sociedade' que me questiona insistentemente: 'mas vc vai largar seu trabalho por causa dele?', 'e a sua vida aqui?', 'pensa bem, hein? Vc pode se arrepender depois'. O 'feminismo machista' embutido na cabeça de muitas pessoas (principalmente minhas amigas, solteiras e mega envolvidas em seus trabalhos), me fez sofrer demais, pensando que eu estaria me anulando ao decidir seguir com ele.
Quando na verdade eu queria era mesmo aproveitar a oportunidade que aqui eu não posso trabalhar (pela questão do idioma -- como fono -- e também pela categoria da minha residência aqui -- eu sou 'esposa', não tenho autorização legal do país pra trabalhar) e resgatar coisas de dentro de mim. Coisas que eu, vivendo a vida acadêmica que tinha e tentando me aperfeiçoar todo o tempo pra ver se eu 'me encontrava' na profissão, acabei deixando de lado e que me faziam muita falta. Foi então que conheci seu blog.
Eu precisava retomar as leituras políticas que fazia, estudar coisas sobre arte e também comecei a me questionar sobre o feminismo da mulher moderna. Quando a Betty Friedan falava sobre a mística feminina, ela defendia que a mulher tinha o direito de fazer o que quisesse com seu corpo e sua vida, não? E por que eu não podia decidir que o que eu queria era ir atrás do homem que amava? Eu tive (e tenho) a sensação de que o machismo está tão intrínseco na alma feminina que as mulheres transferiam a dependência e subserviência que tinham em relação aos maridos para os seus empregos! Antes não era aceitável que a mulher dependesse do marido, e agora ela é obrigada a depender de uma carreira que lhe faz infeliz porque ao que parece é uma boa carreira? É obvio que eu tenho plena consciência da decisão que tomei. Sei também que se eu fosse apaixonada pelo meu trabalho ou se o trabalho do meu marido não pudesse nos manter com um bom nível socio-econômico, talvez essa decisão não fosse tão fácil como foi.
Mas o fato é que aqui eu estou aprendendo outro idioma, eu vou a museus e galerias de arte. Eu leio (antes eu só lia revistas científicas). Leio sobre política, economia, educação, feminismo e maquiagem. Eu tenho tempo pra me cuidar (faço academia, preparo minha própria comida, faço minhas unhas, essas coisas), pra ler livros bestsellers e pra ficar com meu marido. Eu me sinto muito privilegiada. Tenho um marido incrível que quer ser parte da minha vida, e não a razão dela. Dividimos tudo o que temos e somos felizes. Assim que hoje estou certa da decisão que tomei. E seu blog me ajudou muito nisso. Me ajudou a me entender e me ajuda diariamente a entender como funciona a sociedade e a cabeça das pessoas, os julgamentos e os preconceitos a que estamos submetidos todo o tempo. Hoje eu tenho meu próprio conceito feminista e libertário, e acredito antes de tudo que o grande presente do feminismo é defender a felicidade da mulher. Sei que soa utópico e meio conto de fadas, mas creio realmente que o grande ganho que temos é poder escolher fazer o que quisermos e que essa escolha seja respeitada."
Minha resposta: F., quando se tem escolhas, é porque se está numa posição privilegiada. Muitas mulheres pobres, por exemplo, não têm escolha, ou têm escolhas muito limitadas: têm que trabalhar (e ainda cuidar da casa). Poder escolher é, sem dúvida, um grande ganho. Um privilégio.Ninguém tem nada que se meter na sua vida e dizer o que você deve ou não fazer, ou como você deve se sentir por fazer certas escolhas. Eu particularmente não creio que não trabalhar faça de uma mulher mais ou menos feminista. Mas o feminismo como um movimento não poderia nunca pregar "Mulheres, não trabalhem, não tenham independência financeira, dependam de seus maridos". Essa bandeira quem carrega são grupos conservadores que querem voltar aos anos 50, quando a sociedade estava rigidamente separada em papéis masculinos e femininos. Eu acho perigoso uma mulher não trabalhar, até porque metade dos casamentos termina em divórcio. E o divórcio, ao contrário do que pensam os machistas, não é, do ponto de vista econômico, favorável pras mulheres. A menos que você seja casada com um multimilionário, as mulheres saem perdendo financeiramente após um divórcio. Sei que é chato pensar no fim do casamento quando a gente está bem, mas pode acontecer. O "nada é para sempre" pode se aplicar para casamentos e felicidade conjugal, e também para as nossas escolhas. Só porque você não está trabalhando agora não quer dizer que você não estará trabalhando daqui a alguns anos. O que me parece, pelo seu relato, é que você não estava satisfeita com sua profissão de fonoaudióloga, mesmo tendo feito mestrado na área. E é muito comum as pessoas acharem que escolheram a profissão errada. Você pode, se quiser, aproveitar este tempo que você tem para fazer outra faculdade, ou outra pós, e pensar numa outra profissão.Também é muito comum uma mulher "largar tudo", como você fez, para acompanhar o marido numa outra cidade ou até num outro país. O oposto, o marido acompanhar a mulher, é muito menos comum, e é um dos indicadores de como ainda vivemos numa sociedade patriarcal. Nunca vou me esquecer da primeira palestra que dei sobre feminismo, em Mossoró, RN, a convite do lindo e querido Patrick. Eu estava falando sobre como mulheres ganham 30% a menos que os homens, e emendei com um "Claro que não aqui, porque aqui (na Receita Federal onde dei a palestra) vocês são funcionários públicos". E o Patrick me interrompeu pra informar que lá também as mulheres ganhavam 30% a menos que os homens. É que as promoções acontecem quando a pessoa está disposta a se mudar de cidade para assumir uma nova posição, por exemplo (correção aqui). E, devido à estrutura em que vivemos, as mulheres não fazem isso, porque nem pensar que o marido vai largar seu emprego para seguir a mulher.Então eu acho que, como feministas, devemos derrubar esse pensamento de que o provedor da casa é o homem, que o emprego do homem é mais importante que o da mulher. Meu marido ficou muito feliz em deixar de dar aulas de xadrez em duas escolas de Joinville para ir tirar um "ano sabático", digamos assim, em Detroit, enquanto eu estava fazendo meu doutorado-sanduíche, em 2007. Lógico que durante aquele ano ele jogou muitos torneios de xadrez, melhorou seu inglês, e também deu aulas particulares de xadrez e português. Depois, quando terminei o doutorado, em 2009, prestei um único concurso, pra UFC, e passei. E o maridão não teve problema algum em se mudar comigo pra Fortaleza. Hoje ele está trabalhando mais do que nunca e sonhando (eu também) com a aposentadoria. Mas, assim como no seu caso, foi tudo pensando e conversado. Antes de começar o doutorado, eu disse a ele: "Doutorado é um sacrifício de quatro anos. Fiz o mestrado por puro prazer de estudar, mas pro doutorado, tenho que pensar no futuro. Quando acabar, vou prestar concurso pra onde for, de preferência pra uma capital nordestina [sempre quisemos morar no nordeste]. Você está disposto a me acompanhar?"Se ele tivesse um emprego que pagasse melhor que o meu, eu iria com ele. Mas, pra gente, casal sem filhos, é meio impensável ficar sem trabalhar, pelo menos por enquanto. A menos que seja temporariamente, anos sabáticos e tal. Mas nós somos bem mais velhos que vocês. Ficar uns anos sem trabalhar quando se tem 25 ou 30 anos é uma coisa; quando se tem 40 ou 50, é bem outra. Então não vejo problema em você não estar trabalhando, e não te considero menos feminista por isso. Mas, pra que você continue sempre tendo escolhas, é importante planejar. Eu acho que você só teria a ganhar se encarasse o seu tempo sem trabalho como temporário, não como definitivo.
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