Geral
Ainda o caso do aborto
Rodrigo Constantino
Como já disse várias vezes, considero o tema do aborto um dos mais cabeludos de todos. A maior convicção que tenho é que devemos rejeitar ambos os extremos, quais sejam: os que alegam ser o feto um "parasita" no corpo da mãe e que, portanto, seu direito de propriedade é total (ela poderia retirar o feto já em fase adiantada da gestação); e os que assumem que no segundo da concepção já temos uma vida humana e, portanto, tomar a pílula do dia seguinte seria assassinato tal como uma mãe que estrangula seu bebê. Parecem posturas bem bizarras. Para quem tiver mais interesse em meus argumentos, gravei um vídeo sobre o assunto.
Mas o que eu queria focar agora é no grau de atraso do debate e das leis no Brasil, e também aproveitar para mostrar como nossa direita mais religiosa e fanática pode ser reacionária. Esta direita adota a segunda postura citada acima. Para eles, o feto no milésimo de segundo após a concepção já é um ser humano, e até a pílula do dia seguinte seria então crime hediondo, análogo a dar um tiro na nuca do bebezinho. Os membros desta direita acusam qualquer um que aceita a legalização do aborto, ainda que só para casos de estupro ou anencefalia, de "nazistas". Segundo eles ainda, uma pessoa não pode se dizer defensora das liberdades se tolera tais casos de aborto, pois estaria delegando ao estado o poder de dizer quem é ou não um ser humano.
Vamos, então, fazer uma rápida busca pela Wikipedia mesmo, para verificar um pouco da história do aborto. Aos que repetem tanto a questão dos tais valores "judaico-cristãos" e se sustentam na visão da Igreja Católica como bastião sobre o assunto, alguns trechos são bem interessantes. Por exemplo:
Os hebreus penalizavam somente os abortos causados por violência. Os antigos hebreus acreditavam que o feto não tinha existência humana antes do seu nascimento, e que o aborto em qualquer época da gravidez era completamente permissível, se se fazia em favor da vida e da saúde da grávida.
Aristóteles defendia que o feto se convertia em “humano” aos 40 dias da sua concepção se fosse masculino, e aos 90 se fosse feminino. Aristóteles recomendava o aborto para limitar o tamanho da família e na sua obra “Política” reservava esse direito à mãe.
Nem Santo Agostinho nem São Tomás de Aquino consideravam homicídio o aborto com início de termo (o segundo com base cm que o embrião não parece humano). Este ponto de vista foi adoptado pela Igreja no Concílio de Viena, em 1312, e nunca foi repudiado. A primeira colectânea de direito canónico, em vigor durante muito tempo (segundo o principal historiador da doutrina da Igreja sobre o aborto, John Connery, S. J.), defendia que o aborto só era homicídio depois de o feto já estar "formado" — mais ou menos no fim do 1." trimestre.
O Código Penal francês de 1791, em plena Revolução Francesa, determinava que todos os cúmplices de aborto fossem flagelados e condenados a 20 anos de prisão. O Código Penal francês de 1810, promulgado por Napoleão Bonaparte, previa a pena de morte para o aborto e o infanticídio. Depois, a pena de morte foi substituída pela prisão perpétua.
O que podemos notar de interessante é que tanto os hebreus, como os gregos e os dois principais nomes da Igreja Católica medieval, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, tinham uma visão do aborto bem mais moderada que a dos atuais conservadores radicais. É verdade que eles todos não contavam ainda com a ajuda da ciência microscópica, e que a Igreja determinou a excomunhão pela prática do aborto em 1869. É o avanço da ciência mudando as crenças religiosas. Por outro lado, é curioso notar que os revolucionários franceses e depois Napoleão Bonaparte, que se arrogavam o monopólio racionalista, condenaram com veemência o aborto em todos os casos.
A direita atual fica do lado dos jacobinos, e não de Aristóteles, Santo Agostinho ou Tomás de Aquino. No mínimo irônico, especialmente quando os liberais que aceitam a legalização do aborto com ressalvas são acusados por esta mesma direita de "jacobinos" (ou marxistas), de fazer o jogo da esquerda em prol da revolução cultural que irá destruir os valores da liberdade.
Falando nisso, resta então verificar um pouco as legislações sobre aborto nos diferentes países. Será que esta direita está certa em sua paranóia, e que a legalização parcial do aborto é o começo do fim das liberdades, pela total relativização da vida "humana"? Será que permitir o aborto em certos casos leva ao nazismo? Vejamos:
Em 1935,o aborto foi legalizado na Islândia, na Dinamarca em 1937, e na Suécia em 1938.
O aborto não é restringido pela lei canadense. Desde 1969 que a lei permite a prática de aborto em situações de risco à saúde, e, a partir de 1973, a interrupção voluntária da gravidez deixou de ser ilegal.
O aborto é legal, desde os anos 70, na esmagadora maioria dos estados [americanos], só não é legal no Dakota do Sul. É também legal quando a mulher invoca factores socioeconómicos.
Alemanha: O aborto é permitido até às doze semanas a pedido da mulher após aconselhamento médico, ou em consequência de violação ou outro crime sexual. É também permitido após as doze semanas por razões médicas que possui, segundo a lei alemã, uma definição lata, incluindo saúde mental e condições sociais adversas.
Áustria: O aborto é permitido até as doze semanas a pedido da mulher (lei de 1975). Permitida após as doze semanas em caso de perigo de vida, risco de malformação do feto, mulher menor de 14 anos.
Bélgica: O aborto é permitido até as doze semanas quando a gravidez coloca em risco a mulher, razões sociais ou económicas. Permitida após as doze semanas em caso de sério risco para a saúde.
Itália: O aborto é permitido até aos noventa dias (entre as doze e treze semanas) por razões sociais (incluindo as condições familiares e/ou as circunstâncias em que se realizou a concepção), médicas ou económicas: de facto, a pedido da mulher. Permitida em qualquer momento em caso de risco de morte ou saúde física ou mental da mulher, risco de malformação do feto, violação ou crime sexual.
O aborto na França é permitido até as doze semanas a pedido da mulher caso não tenha razões para ser mãe; razões sociais ou económias. É exigido o aconselhamento da mulher. Permitida após as 12 semanas em caso de risco de morte ou saúde física da mulher, risco de malformação do feto. É necessária a certificação de dois médicos da situação.
O aborto na Espanha é permitido até a 14ª semana de gestação e, até a 22ª, desde que a gestação possa comprometer a vida ou a saúde da gestante ou constatada malformação no feto, se certificada por dois médicos. Após esse período, o aborto fica condicionado, a partir de laudos de um painel de médicos, à anomalia fetal que signifique risco à vida ou quando o feto sofrer de doença grave e incurável.
O aborto é permitido em Portugal até às dez semanas de gestação a pedido da grávida.
O aborto é legal na Inglaterra, Escócia e País de Gales desde 1967.
Austrália: O aborto é permitido, desde 1977, até as vinte semanas de gravidez, e depois das vinte semanas, se prejudicar a saúde da mulher. A regulamentação requer que o aborto após as doze semanas de gestação têm que ser realizadas em “instituições licenciadas”, que são normalmente hospitais.
Como fica claro acima, a imensa maioria dos países ditos civilizados, desenvolvidos e com maior liberdade individual aceita o aborto em diversos casos. E em muitos casos há décadas! Isso apenas ilustra como o debate em nosso país é atrasado em vários aspectos, especialmente quando a religião se mete em demasia na vida dos outros. Ninguém vai virar ditadura comunista só porque aceitou que a mulher possa decidir manter ou não sua gestação, especialmente em casos delicados.
-
Menina De 11 Anos Grávida Reacende Discussão Sobre Aborto
O caso de uma menina de 11 anos grávida, cuja mãe pediu à Justiça que fosse permitida a interrupção da gestação por se tratar de fruto de abusos sexuais, mas inesperadamente desistiu da ideia, reacendeu na Argentina a polêmica sobre a legalização...
-
Derrota
A direita ultracatólica no poder na Polónia não conseguiu a maioria parlamentar necessária para rever a Constituição de modo a estabelecer a proibição absoluta do aborto. A actual legislação já só admite o aborto no caso de violação, de...
-
Direito Ao Aborto
O Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) acaba de condenar a Polónia num caso em que uma mulher não conseguiu obter a interrupção gravidez que tinha pedido, apesar de invocar perigo para a sua saúde, o que se veio a confirmar posteriormente,...
-
Enviesamento De Linguagem
Que os opositores à despenalização do aborto falem em "referendo sobre o aborto" (ou "referendo do aborto"), compreende-se, pois isso favorece a sua posição. Mas que essa expressão imprópria seja utilizada inadvertidamente pelos media e mesmo por...
-
Dúvida
Satisfazendo um compromisso eleitoral, o grupo parlamentar do PS desencadeou o processo de convocação do referendo sobre a despenalização do aborto até às dez semanas. A pergunta é a mesma que foi submetida à mal sucedida consulta popular em 1998,...
Geral