AS HUMILHAÇÕES DOS TROTES
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AS HUMILHAÇÕES DOS TROTES


Como sempre acontece em tantas universidades, este ano na Unicamp também houve abuso nas atividades de recepção aos calouros. Algumas calouras reclamaram, a questão foi levada pro Centro Acadêmico, e notou-se (como é igualmente comum) que não havia espaço para reflexão sobre o machismo no meio universitário. Pra preencher essa lacuna, alun@s da Unicamp decidiram promover um ciclo de debates sobre machismo e opressão de gênero na universidade, nos movimentos sociais e na mídia. É por isso que estarei lá no dia 28, próxima segunda. Fui convidada justamente para falar sobre esses trotes. Mas sou professora, e quem é alun@ conhece melhor a dinâmica dos trotes, essa praga hierárquica e repulsiva disfarçada de tradição e brincadeira. Queria pedir pra vocês compartilharem experiências humilhantes de trotes, para que eu possa ter mais exemplos pra minha palestra.
Conheço alguns casos. Inclusive já tratei de vários no blog. Em 2010, durante o InterUnesp, jogos universitários realizados em Araraquara, cerca de 50 rapazes da Unesp derrubaram agumas alunas gordas e montaram nelas, como se fossem peões dominando touros. Os outros gritavam: “Pula, gorda bandida!”. Isso foi organizado no Orkut, e os mascus sanctos se vangloriam que foi obra deles (bem capaz). Os três organizadores do Rodeio de Gordas receberam apenas cinco dias de suspensão. Já o Ministério Público forçou um acordo para que Roberto Negrini e Raphael Dib Tebchrani pagassem cerca de 20 mil reais cada um em cestas básicas para instituições (ironicamente, feministas e LGBTTT). Um dos três organizadores, Daniel Prado de Souza, recusou-se a assinar o acordo. Se for condenado, terá de pagar 50 cestas básicas. Fica aqui a torcida para que seja.
No início do ano passado, calouras da Agronomia da UnB tiveram que chupar linguiças com leite condensado em cima, simulando sexo oral (e, pra aumentar a humilhação, quem segurava a linguiça era o presidente do grêmio, vestido de presidenta). Também houve a “brincadeira” de chupar linguiça com camisinha. Enquanto as calouras, uma de cada vez, chupavam a linguiça, um coro de cerca de 250 estudantes cantava “Ovo, ovo, ovo, vai até o ovo”. Os responsáveis pelo evento tiveram a cara de pau de negar o cunho sexual da recepção.
Agora em abril, na faculdade de Direito da UFPR, um dos partidos acadêmicos do curso lançou um guia para calour@s, chamado de “Manual de Sobrevivência: Como Cagar em Cima dos Humanos”, principalmente dos direitos das humanas, que teriam obrigação de dar. Houve nota de repúdio, e o grupo feminista do curso fez uma manifestação contra o manual e o machismo na sua faculdade. Muito a contragosto, o responsável disse que, “SE ofendeu alguém”, pedia desculpas.
O que esses três casos, em cursos e universidades bem diferentes, têm em comum? Eles mostram o descaso que se tem com as mulheres. Alunas, principalmente calouras (o patamar mais baixo na pirâmide social universitária), estão lá para servir a alunos, de uma forma ou de outra. É claro que esse tratamento misógino não é exclusividade das universidades. Ele está em todo lugar. O que choca é que ele persista até num meio privilegiado como o universitário, que deveria ser o ápice da educação formal. Muitas calouras entram na univesidade como foram instruídas -– a baixar a cabeça e fazer o que os homens mandam, sem reclamar. Já os alunos veem essas alunas como se fossem suas. O corpo delas não é delas, é deles.
Este excelente (e forte) vídeo da Frente Feminista da PUC-SP diz muito. Começa mostrando clichês machistas na mídia, e logo vem a pergunta: “Você acredita que está muito longe disso? Acredita que por estar na faculdade te olham de outra forma?” Em seguida surge uma calourada em que as alunas batem bumbo e os alunos cantam: “Seus peitos moles eu cansei de chupar. […] Ó caloura pucquiana, vc não sente dor / Não tenho tanta p*rra / Não sou fornecedor”. Não está claro no vídeo o que é e não é uma performance.
Mas alguma dúvida que essas coisas existam? Nos Jogos Jurídicos, olimpíadas e recepções aos calouros, as faculdades fazem charangas, equipes da bateria para cantar e tocar músicas de torcida para provocar outras equipes/cursos. Por exemplo, aqui está o Proibidão da Atlética da PUC-MG. No repertório de charangas do Direito da UFMG (também chamada de “Vetusta”) há atrocidades assim: “Moreninha vagabunda / Não estudou, só deu a bunda / Foi pra Fumec / Êeeêee / Só sabe f*der. / Loirinha muito rica / Só sabia ch*par p*ca / Foi pra Fumec / Êeeêee / Só sabe f*der. / Ô gorda submissa / Foi pra PUC rezar missa / Lambe minha gl*nde / Êeeêe / Vai emagrecer”. Essas são cantadas em coro por estudantes festivos.
O negócio é tão enraizado que muitas alunas apoiam os trotes e insistem que “a maldade está nos olhos de quem vê”. Uma veterana da Agronomia UnB que defendeu o trote de chupar linguiça (na época dela, ela teve que pegar uma cenoura no meio das pernas de um colega) ilustra bem a situação: “Todos podem fazer o que bem entendem, menos a gente”. E cita o exemplo de um programa de TV em que as participantes têm de pegar notas de dinheiro com a boca. Ou seja, se a mídia é machista, se o mundo é preconceituoso, por que a universidade também não pode sê-lo? De brincadeirinha, claro. E só brinca quem quer.
Em abril último, muita gente lançou nota de repúdio aos atos de violência moral e psicológica ocorridos nos rituais de recepção aos novos alunos da Faculdade de Direito da USP/Ribeirão Preto. Na Festa de Coroação, um grupo de calouras foi proibido de sair do recinto por não querer participar da “brincadeira” “Bixete pega o disquete”. Trata-se de um desfile em que as “bixetes” tem que se abaixar no final do percurso. No “juramento”, os calouros homens prometem não usar seus pênis. Já as calouras, que começam seu juramento com as palavras “Eu, bixete vagabunda...”, dizem que seguirão belas e pertencerão apenas aos veteranos.
Este ano, na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal de Juiz de Fora, calouras tiveram que carregar placas escrito “Cara de sapatão” e “Cara de p*ta”. Em 14 de abril ocorreu um caso de abuso sexual contra uma estudante da mesma universidade durante a Calourada do Instituto de Artes e Design. Felizmente, a UFJF tem um Coletivo Feminista, o Maria Maria, que está fazendo pressão. Seu lema é “mudar a vida das mulheres para mudar o mundo, mudar o mundo para mudar a vida das mulheres”.
Pois é, grupos feministas existem e são importantes. Tanto que alunos vivem tentando deslegitimar qualquer protesto de mulheres sobre qualquer coisa. Recebi um email em março de uma aluna reclamando que o CA de Direito da USP chamou uma bandinha de mulatas seminuas para sambar na faculdade. Isso é ofensivo porque, numa universidade com tão poucos negros e pardos (apenas 0,2% dos professores da USP não são brancos), parece que a única forma que moças negras e pardas teriam de entrar é como faxineiras ou mulatas de carnaval. O Coletivo Feminista Dandara, que faz várias campanhas contra o machismo, muitas vezes encontra resistência de alun@s que não querem mudar coisa alguma.
Na mesma semana que recebi o convite da Unicamp, recebi também email de uma aluna da Unifesp Guarulhos. Lá eles estão em greve há mais de um mês, e o clima entre alunos pró e anti greve não anda bom. Numa assembleia recente, os alunos decidiram continuar a greve, e a votação foi apertada. Quando uma das manifestantes quis hastear uma bandeira, um manifestante anti-greve iniciou um bate boca e logo passou a chamar a moça de vadia e vagabunda. Alunas lançaram um manifesto e foram rechaçadas por uma ala conservadora da universidade “que simplesmente não se envergonha de mostrar seu machismo assumidamente em espaços públicos de debate”. Pra demonstrar que a aluna não está exagerando, reproduzo um entre dezenas de comentários deixados por alunos no blog aberto para repudiar o machismo: “Manifesto aqui minha total solidariedade para com os alunos que ofenderam a menina, toda feminista é vádia, até por que o feminismo prega precisamente isso, somente os cegos pela devassidão moral é que não entendem”. Isso vindo de um aluno da faculdade!
Num espaço com tanto preconceito, é lógico que haverá lugar para trotes humilhantes, ameaças, palavrões que valem só pra mulheres, e, em casos mais extremos, rodeios em alunas fora do padrào de beleza e até estupros. Se existe uma boa notícia neste post é que há resistência: a nossa, e a de todas as pessoas que veem que as universidades refletem o mundo encontrado “lá fora”, e lutam para mudar esse mundo.
Mas existe outra boa notícia. A partir deste ano, os órgãos que avaliam tanto universidades públicas quanto privadas incluirão o tipo de trote na equação. As avaliações cobrem trinta indicadores (infraestrutura, planejamento etc), e a questão dos trotes será um deles, entrando na política de atendimento ao estudante. Vamos ver se, correndo o risco de ver sua instituição rebaixada, reitorias sejam mais atuantes em coibir trotes violentos, e alun@s entendam a universidade como lugar de transformação, de tolerância, de diversidade. Afinal, ninguém precisa estudar pra perpetuar a desigualdade.




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