CADA SUSPIRO QUE VOCÊ DER
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CADA SUSPIRO QUE VOCÊ DER


Uma leitora, a Camila, descobriu o que muita gente já havia percebido: que "Every Breath You Take", do Police, é a canção de um stalker (ouça e leia a tradução). Parece óbvio, né? O cara diz que a cada coisa que “seu amor” fizer (cada passo, cada sorriso, cada promessa, cada movimento, cada noite), ele estará observando. Desde que ela o deixou, ele mal consegue dormir, só chora. E, pra completar: “Você pertence a mim”.
Dizem as más línguas que Sting escreveu a música pensando na ex-mulher, se bem que ele nunca foi um stalker. Não há dúvida que a canção foi um sucesso imediato, uma das mais ouvidas de 1983 e 84, talvez a mais famosa do Police. É a número 84 na lista da Rolling Stone das 500 melhores canções de todos os tempos, e número 25 na Billboard Hot 100. Sting diz: “Parece uma canção de amor. Não notei como ela é sinistra. Acho que estava pensando em Big Brother [que na década de 80 ainda estava longe de ser um reality show, e era "apenas" um personagem de 1984, clássico de George Orwell], vigilância e controle”.
Mais pra frente, Sting, que é um ativista de direitos humanos muito respeitado, se revelou chocado por tanta gente pensar que a música é positiva. “Um casal me disse que amava a canção, e que seria a principal a ser tocada no casamento deles. Eu pensei, 'Bom, boa sorte'”. Ele também afirmou que soa zangado ao cantar a canção  porque “ela é muito, muito sinistra e horrível, e as pessoas a interpretam como sendo uma linda canção de amor”.
Pois é, não se trata de uma canção romântica de um sujeito apaixonado, e é um erro lê-la dessa forma. É uma mensagem ameaçadora (ele está falando com a ex) de um cara doente e obcecado que não consegue aceitar que a ex não o quer mais e está refazendo a vida sem ele. 
E a gente sabe como muitos desses enredos terminam, certo? 
Com o cara matando a ex, e muitas vezes se suicidando em seguida. Entre dez a doze mulheres no Brasil são mortas todo dia, quase sempre pelo companheiro (que percebe que ela quer sair de uma relação abusiva), ou pelo ex-companheiro, que não aceita a separação. É uma das formas de feminicídio mais comuns que existem, e é claro que acontece em todo lugar, inclusive em países ricos como a Inglaterra. Em 2009 101 britânicas foram mortas pelo marido, namorado ou ex.
O que muitas vezes parece romântico pode ser uma obsessão. Por exemplo, o comportamento de Edward no primeiro Crepúsculo não é uma gracinha. Ele passa a seguir Bella por todo canto e entra no seu quarto, sem que ela perceba, para zelar pelo seu sono. O que soa como uma postura protetora (quem protege Bella dele?) pode se transformar rapidamente num boyfriend-from-hell (a namorada ou ex obcecada também existe, mas ela raramente será violenta com seu objeto de desejo. É mais comum que ela se mate, em vez de matar alguém). 
Por isso que é importante ficar com os dois pés atrás ao notar que o namorado é ciumento e possessivo. Esses não são sintomas de amor, mas de comportamento obsessivo, de gente que não aceita um não como resposta, que vai querer controlar o relacionamento, e que quase certamente não aceitará com tranquilidade o fim da paixão.
Na década de 80 eu era uma adolescente, e escutava rádio. Deve ter sido a única década da minha vida em que eu acompanhava as mais tocadas. Portanto, eu adorava Police e “Every Breath You Take” (e continuo adorando). Mas é impressionante como nem eu nem ninguém nos dávamos conta de que essa era a narração de um stalker. 
A gente realmente achava que era só um carinha apaixonado declarando como não para de pensar no seu amor! E lógico que já existiam stalkers e homens ciumentos que cometiam o que na época (e ainda hoje) era chamado de crime passional. Inclusive, naqueles tempos muitos nem eram condenados por “lavar a honra”. Foi quando feministas brasileiras tiveram que sair às ruas para gritar o óbvio: quem ama não mata.
Mas por que essa miopia coletiva que fazia ver "Every Breath" como uma canção de amor? É estranho, porque em 1983 o mundo já estava muito bem servido de stalkers. Um grande filme de Martin Scorsese, O Rei da Comédia, é bem desse ano, e é sobre como Robert De Niro e Sandra Bernhard perseguem (a ponto de sequestrar) Jerry Lewis, num raro papel sério.  Este drama perturbador mostra como amor e admiração viram ódio rapidinho.
Por falar em Scorsese e De Niro, em 76 eles já haviam feito o magnífico Taxi Driver, em que um veterano do Vietnã, Travis Bickle, fica obcecado por uma mulher (Cybill Shepherd), e depois por uma menina (Jodie Foster), uma prostituta que ele tenta “salvar” do mundo degenerado que o cerca (aliás, esta também é uma boa dica pra evitar psicopatas: fuja de paladinos da honra e da justiça que acreditam que o mundo está perdido).
E, lógico, muito cuidado em se relacionar com alguém que encare Travis Bickle como herói! Foi o caso de John Hinckley Jr, que viu o filme dezesseis vezes seguidas e se apaixonou por Jodie Foster, que tinha apenas 14 anos na época. Em 1980, Jodie interrompeu sua brilhante carreira de atriz para estudar em Yale, e Hinckley a seguiu. Ele era um típico “I'll be watching you”, com a diferença que Jodie não tinha absolutamente nada com ele. Mas ele lhe mandava poemas e cartas, tentava frequentar as mesmas aulas, escutava por trás da porta do dormitório da atriz.  
Esta é a carta que Hinckley enviou a Jodie no mesmo dia em que ele se tornou uma celebridade.
Era março de 1981 e, baseando-se no seu herói Travis Bickle, Hinckley tentou matar o presidente Ronald Reagan. Ele acabou ferindo o presidente, dois de seus guarda-costas, e um secretário. E fez tudo isso pra chamar a atenção de Jodie. Hinckley foi absolvido por insanidade, e permanece internado num asilo psiquiátrico. Permanece também obcecado por Jodie, tadinha (tadinha nada. Jodie, provavelmente a atriz-mirim -- ela atua desde os 3 anos -- mais bem sucedida de todos os tempos, ontem comoveu a todos com seu discurso no Globo de Ouro, quando recebeu seu 44o prêmio. Não cabe neste espaço minha admiração por Jodie).
Esse famoso atentado cometido por um stalker aconteceu dois anos antes do lançamento de “Every Breath You Take”, e ainda assim a gente viu a canção como uma declaração de amor! Hoje em dia imagino que muitxs de nós interpretariam a música como o que ela é -– uma ameaça de um stalker. Mas o que mudou de lá pra cá pra que nossa interpretação mudasse?
Não sei ao certo. Acho que a palavra stalker, apesar de, tal como bullying, ainda não ter tradução pro português (como se esses problemas não fizessem parte do nosso cotidiano!), está muito presente atualmente. A internet popularizou e intensificou os stalkers, já que não há nada mais fácil que seguir obsessivamente o blog, a página no FB, o twitter da ex, ou mesmo daquela pessoa que mal sabe que o stalker existe, mas que transformou-se em alvo da loucura alheia. O “cada suspiro que você der” pode ser acompanhado em tempo real, e não deixa de ser perigoso.
Mas não é amor. Quem ama respeita a decisão da pessoa de não iniciar uma relação, ou de terminá-la. Quem ama não mata. Quem ama não destrói. Em suma: quem ama não stalkeia.




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