GUEST POST: ACHO QUE EU ERA UM POUCO STALKER
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GUEST POST: ACHO QUE EU ERA UM POUCO STALKER


A J. me enviou este relato:

Oi Lola, conheci o seu blog há cinco anos, quando comecei a estudar sobre feminismo. Fiquei uns anos longe da internet por causa do trabalho e estudos. Queria te agradecer pelo blog porque ele sempre foi muito esclarecedor para mim, além de ser (lindo e maravilhoso) o único que eu leio todos os comentários das postagens. Parabéns a(o)s comentaristas também (acho que você fez um ótimo trabalho limpando os trolls daqui).
Alguns dias atrás voltei a ler o blog regularmente, porque minha irmã começou a lê-lo e comentar comigo. Nesse tempo, vi muitos posts interessantes e me encantei com alguns guest posts em que pessoas compartilham suas experiências. Particularmente eu li um post sobre stalker e me identifiquei -– com o lado do stalker.
Eu tenho hoje 23 anos e sempre fui uma menina bastante introvertida e solitária. Tive uma vida relativamente normal, embora não totalmente livre de traumas, como a maioria das mulheres. Sofri um pouco, tive depressão durante a adolescência, e atualmente faço terapia pra tratar ansiedade.
Talvez por não me relacionar muito bem (ou tão facilmente) com as pessoas, acabei dedicando boa parte do meu tempo aos estudos e leitura, me interessando por ciência e filosofa. Sou ateia desde os 12 anos, feminista desde os 16. Eu me considero uma pessoa bastante racional e lógica. Então, a minha história.
Passei toda minha vida com poucos ou nenhum amigo. Também tenho um relacionamento muito frio com meus pais e a maioria dos familiares (exceto minha irmã). E por causa disso, tenho muita carência emocional. Portanto, desde a minha infância, até dois anos atrás, tive vários amigos imaginários pra suprir isso.
Quando tinha 16 anos, conheci uma menina que foi a minha primeira amiga em três anos, e me apaixonei por ela. 
Levei um bom tempo pra admitir isso, porque nunca havia me questionado sobre minha sexualidade. Eu era bastante infantil nesse sentido e até meio assexuada. Então achava que estava tendo “sentimentos normais de amiga”, até que comecei a ouvir comentários maldosos de familiares, a ter uns sonhos esquisitos. Não gostava muito da ideia de ser lésbica, mas acabei admitindo. (Hoje me defino como bissexual).
Realmente estava encantada por ela. Pensava nela o dia todo. Mudei de turno quando ela mudou de turno. Ela conversava comigo, fazia os trabalhos comigo, tínhamos uma certa relação, mas eu estendi essa relação muito além da realidade.
Ela acabou se tornando minha melhor amiga e isso durou alguns anos. Enquanto isso eu continuava sendo obsessiva em segredo. Como eu não lidava muito bem com a minha recém-descoberta sexualidade, achava que era errado tentar me aproximar dela, embora eu quisesse muito. Sentia muito ciúmes sempre que ela começava a sair com alguém, chorava, entrava em desespero, sofria.
Nós conversávamos (além da escola), bastante por chat e redes sociais. Eu sempre guardava as conversas numa pastinha e relia várias vezes. Até destacava as frases relativamente românticas em rosa. Comecei a guardar fotos dela (que ela publicava na internet, ou que eu roubava do computador da prima dela, que se tornou minha amiga), cheguei a ter mais de cem fotos. De forma geral eu passava todo o meu tempo ou falando com ela ou sonhando com o que não existia, imaginando coisas e alimentando isso.
Isso tomou conta de toda a minha vida. Nada mais fazia mais sentido se não fosse por ela. Ninguém podia substitui-la. Ela era o “amor da minha vida”. E eu que era eu, comecei até a acreditar em destino e almas gêmeas, porque um desejo tão forte só podia ser isso. Eu achava que era amor.
Como não podia deixar de ser, uns dois anos depois tivemos uma briguinha em que ela ficou umas semanas me evitando (ela não tinha me contado porquê). Entrei em desespero e acabei confessando tudo. Não falei tudo, tudo em detalhes, porque ainda tinha um pouco de raciocínio.
Ela não respondeu.
Por mais ou menos seis meses ela não respondeu nada. Nem uma palavra. Eu chorava todos os dias, umas duas horas por dia, e só ouvia “Losing my religion”, “Every breath you take”, e músicas doentias. Mesmo nesse tempo, ainda tinha esperança. Acho que ter esperança era uma estratégia pra não me matar. Continuei olhando as fotos, relendo as conversas, imaginando que tinha solução, que era só uma questão de tempo ela se acostumar com a ideia, que ela gostava de mim, porque ela tinha que gostar. 
Porque eu não sabia o que ia fazer da minha vida se ela não gostasse.
Isso tudo por uma pessoa que eu nunca nem tinha beijado.
Várias vezes eu sentava em lugares estratégicos na faculdade (estudávamos no mesmo campus) pra vê-la passar. Não fiquei um único dia letivo sem vê-la, embora ela não me visse.
Nessa época tentei levar uma vida relativamente normal. Eu saía às vezes, até beijava meninas, embora não me interessasse romanticamente por elas, e me sentia culpada por estar “traindo meu amor verdadeiro”, ou imaginava se ela ficaria com ciúmes se soubesse. Um dia em que estávamos no mesmo ambiente (uma festinha), ela bebeu um pouco e fez as pazes comigo. Eu não sabia o que realmente sentir naquelas horas. Uma parte de mim estava magoada por ela ter passado tanto tempo sem falar comigo, outra parte estava feliz por ela ter me perdoado, e uma parte de mim ainda tinha esperanças que ela ia acabar ficando comigo algum dia.
Depois que o efeito do álcool passou, ela voltou a me evitar. Eu continuei sonhando, às vezes tentando aproximação, chorando toda noite, sofrendo enormemente, pensando em me matar. Eu não via saída nenhuma. Tive vários pesadelos no qual eu “fazia sexo” com ela, mas ela não se mexia, e então eu via o rosto dela e ela estava apavorada -- nessa hora eu acordava. E depois de uns três sonhos assim eu sabia que devia parar.
Por um lado eu sabia que tudo aquilo era doentio e errado. Que eu devia respeitar a escolha dela e tal. No início eu achava que estava sendo romântica, foi difícil perceber que estava totalmente fora de controle. Que eu guiava toda minha vida a partir dela, que não sentia felicidade em mais nada. 
Durante os quase cinco anos que essa história se estendeu, e principalmente depois que eu levei o “fora”, eu não tinha mais autoestima. Não tinha um conceito muito definido de quem eu era, porque eu não lembrava quem eu era. Tudo o que eu fazia era pensando nela, os livros que eu lia, os filmes, as músicas (eu tentava ouvir/ler/assistir as mesmas coisas que ela). Quando ela saiu, não havia nada.
Demorei muito tempo pra conseguir me reconstruir. Um dia, depois de assistir um filme (é um pouco vergonhoso, mas foi 500 Dias com Ela), depois de um ano e seis meses de ter levado o fora, pensei na possibilidade de que ela não fosse me querer NUNCA. E tentei lidar com isso.
Passei vários dias sem sair do quarto, chorando e sem me alimentar direito. Foi um tremendo baque. Eu não tinha mais nada, nada. Não tinha mais nem eu mesma. Imagino que muitas pessoas nessas horas resolvam se matar. Que algumas até resolvam matar a pessoa “amada” pra depois se matar. Não lembro exatamente o que pensei, mas foi algo do tipo “você só tem 19 anos e isso é ridículo, além do que vai fazer ela se sentir culpada e fazer sua mãe sofrer”. 
Nunca pensei em fazer mal diretamente a ela. Meu lado racional podia não entender que aquele meu amor maluco era errado, mas eu ainda entendia que matar uma pessoa era errado. 
Ainda levei um bom tempo pra superar. Excluí as fotos, as conversas, parei de segui-la na faculdade. Aí eu voltava a repetir esse tipo de comportamento. 
Vi em vários comentários sobre o “Every Breath You Take”, que a música “enganava” com aquela melodia romântica. Que os stalkers eram monstros perigosos tentando “enganar”. O que eu acho é que não é tanto uma tentativa de enganar outra pessoa, mas sim de enganar a si mesmo. Que aquele maluco psicótico que diz que te ama, que você pertente a ele e que não aceita a separação, realmente pensa que está sendo romântico, que é amor. É muito difícil olhar pra si mesmo e ver o problema. Levei alguns anos, alguns relacionamentos (dessa vez reais), e bastante terapia pra entender o que havia acontecido, e o que ainda acontecia, em certo grau.
Nunca fui muito perigosa, mas acho que isso se deve mais a outras características minhas, como de não ser quase nada agressiva. Nesse tempo que estava próxima dela conheci muitos caras que também gostavam dela, e que tentavam se aproximar dela através de mim. Eles falavam coisas do gênero de “eu amo ela, ela tem que gostar de mim", "eu deixo de sair com mulheres que transariam comigo pra sair com ela”, ou que ela estaria sendo ingrata por rejeitar um homem tão bonzinho quanto ele, reclamavam da friendzone. 
Enfim, homens normais, que embora não fossem tão perturbados quanto eu, achavam realmente no fundo de seus corações que se, eles se dedicavam a conquistar uma garota, ela TINHA que ceder. Que eles eram legais e as mulheres idiotas só gostavam dos cafajestes. 
Não posso saber exatamente, mas imagino que se eu tivesse somado meu problema psicológico a uma educação ruim tipo essa, talvez eu tivesse sido um problema muito maior pra ela.
Ela não sofreu tanto com a minha obsessão, porque a maior parte, a maior parte mesmo, eu mantive em segredo. Nunca contei e não pretendo contar. Hoje em dia eu consigo perceber que ela não era nada daquilo que eu imaginava, que eu inventei tudo. Não somos mais grandes amigas, mas conversamos de vez em quando sem nenhum problema.
Não sei se cheguei a ser realmente uma stalker. Mas acho que o ponto não é realmente se eu “cruzei a linha da normalidade”, porque acredito que a questão não seja essa, e que não haja nenhuma linha. Acho que muitas pessoas que não são necessariamente perigosas têm algum grau desse problema.




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