Em busca do Paraíso
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Em busca do Paraíso



Rodrigo Constantino

“Devemos buscar a perfeição na criação, na vocação, no amor, no prazer. Mas tudo isso no campo individual. No coletivo, não devemos tentar trazer a felicidade para toda a sociedade. O paraíso não é igual para todos.” (Mario Vargas Llosa)

Qualquer pessoa minimamente sensível ficaria estarrecida com a condição de vida da classe operária na França durante o século 19. Era o caso de Flora Tistán, feminista, socialista e autora do livro “A União Operária”. Ela dedicou os últimos anos de sua curta vida à luta pelo paraíso terrestre, por uma revolução pacifista que iria trazer dignidade aos trabalhadores e igualdade para as mulheres.

Flora era avó do pintor impressionista Paul Gauguin, que acabou seus dias isolado em uma ilha longínqua da Polinésia, consumido pela sífilis. Koke, como era conhecido entre os nativos maoris, fora para lugares exóticos em busca do paraíso terrestre, longe dos preconceitos burgueses de sua França. Avó e neto compartilhavam, além dos laços consangüíneos, este desejo incontrolável de partir em uma busca messiânica e utópica, contra a sociedade repressora e moralista de suas épocas. É este o enredo histórico romanceado por Mario Vargas Llosa em “O Paraíso na Outra Esquina”.

Com sua habilidade incomum para dar vida aos personagens históricos, Vargas Llosa faz o leitor mergulhar na consciência imaginária destas duas figuras complexas, com uma narrativa que prende do começo ao fim. O autor nos apresenta a hipótese de como o sonho de uma utopia terrena pode ser poderoso, conquistando a vítima de tal forma que ela não consegue mais controlar suas escolhas. Tudo aquilo que pareceria normal, racional perante o olhar da sociedade, acaba deixado de lado em troca de um chamado tão forte a ponto de ofuscar todo o resto.

O que leva um corretor de bolsa bem-sucedido, de 35 anos, casado e com cinco filhos, a abandonar tudo e partir para ilhas distantes em busca da obra-prima em sua recém-descoberta arte da pintura? Gauguin estava convencido de que precisava rejeitar os preconceitos burgueses de sua civilização e procurar estímulo nos bárbaros, nos selvagens que ainda não foram civilizados e, portanto, agiam por puro instinto. A Europa cristã, segundo o pintor, havia incutido angústias e remorsos, a sensação de culpa nas pessoas, especialmente em relação ao sexo. Era preciso sair à procura do instinto selvagem, livre de tais amarras moralistas.

Já a avó Flora, diante do machismo tosco de sua época, inclusive de seu marido asqueroso, e observando o sofrimento e a miséria dos pobres trabalhadores, sairia em busca de nada menos que a redenção humana. Um novo mundo de harmonia e paz seria possível, e ela recebera o chamado para liderar o processo de mudança, como uma messias. O lucro, veneno da sociedade, as armas e o Exército, tudo seria abolido neste novo mundo de paz. E quando os próprios operários não queriam saber de nada desta revolução, era porque não passavam de uns bárbaros estupidificados, dependentes da liderança de uma elite esclarecida.

Nada ficaria entre Flora e sua cruzada, nem mesmo seus filhos, que teriam de pagar um preço em nome do sacrifício da mãe. Os fins louváveis justificavam esta necessidade compreensível. O mesmo valia para seu neto, que, em nome do regresso ao selvagem, passou a defender o canibalismo e a praticar a pedofilia. Tudo era válido, pois qualquer freio não passava de um resquício do moralismo burguês e cristão, que mantinha este conceito ultrapassado de família e casamento. Junto ao então amigo Vincent van Gogh, o Holandês Louco, Gauguin iria criar a Casa do Prazer, um refúgio de liberdade plena neste mundo repleto de limitações impostas pelos valores sociais.

Se a religião de Flora era “o amor pela Humanidade” (lembrando o alerta de Nelson Rodrigues, de que amar a Humanidade é fácil, sendo o difícil amar o próximo), então a religião de seu neto pintor era a “pureza selvagem”. Ambos viveram com base nestas fortes crenças, passando por cima de tudo, confrontando todo o código de moral e religião da burguesia. O que conseguiram, na prática, nada se parecia com aquilo sonhado. Paul fora para o Panamá, para Martinica e para o Taiti, sempre querendo encontrar este índio puro, blindado contra a hipocrisia da civilização. Mas nunca achava aquilo que procurava.

O pai de Flora nascera em Arequipa, no Peru, a mesma cidade em que Vargas Llosa nasceu em 1936. O nome do livro é uma alusão a uma brincadeira peruana onde as crianças perguntavam: “O paraíso é aqui?”, e sempre escutavam a resposta: “Não, procure na outra esquina”. E assim iam sucessivamente, sem encontrar aquilo que procuravam. O jogo é uma metáfora perfeita para a vida destes dois personagens aparentados. Flora Tristán e Paul Gauguin, cada um à sua maneira, viveram em busca deste paraíso terreno, impondo enormes sacrifícios a suas vidas e a de seus familiares, sem jamais encontrá-lo.

O próprio Vargas Llosa sempre condenou utopias, e se considera um liberal pragmático. Mas reconhece, entretanto, que as artes em geral e a literatura em particular existem para nos oferecer esta fuga para o impossível, este recorte, ainda que temporário, para um mundo de imaginação sem os freios e limitações tradicionais da vida cotidiana. Não é preciso aderir a um sonho utópico para reconhecer os problemas da vida real, até mesmo do moralismo burguês e da culpa incutida pela religião. Mas é preciso ter muito cuidado com a alternativa sedutora, talvez um tanto infantil, de partir em busca da “liberdade plena”. Como alerta Vargas Llosa em uma passagem do livro, “nesta vida as coisas nunca saíam tão bem como nos sonhos”. Elas nunca sairão. Por isso sonhar é preciso, mas com os pés no chão.




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