“Que triste! Esses pedófilos não têm Deus no coração!”. Assim foi a expressão de diversos religiosos no Twitter depois do caso do blog de pedofilia que foi alvo de campanha de denúncia em massa no site na madrugada de 26 para 27 de junho últimos. Numa investida coletiva contra pedófilos, quem acabou em parte pagando o pato foram os ateus, cuja descrença em divindades acabou sendo a ferramenta dos ateofóbicos para os equipararem a criminosos. Porque, afinal, para eles não existe o bem sem Deus, o que podemos explicar por diversos motivos.
Essa é uma das várias formas de cristãos fundamentalistas expressarem seu etnocentrismo religioso que, direta ou indiretamente, nega a existência de qualquer lógica em credos ou não credos que excluam o deus bíblico. Para essas pessoas, só existe amor, bondade, justiça, compaixão, ética, o bem quando seu deus está presente. Seres humanos são vistos como incapazes de qualquer realização benigna sem a influência da divindade.
Isso leva à crença de que a falta de Deus é tudo de ruim. É maldade, é imoralidade, é perversidade, é injustiça, é violência. Só que quem pensa assim acaba ignorando, ou até mesmo desconhecendo, que existem pessoas que não acreditam nesse deus e não são ruins. E fatalmente a ignorância dos que não acreditam em uma lógica fora de Deus acaba se convertendo num preconceito dos mais pesados.
E isso vem aumentando à medida em que esses crentes começam a usar mais intensivamente a internet e se deparam com os ateus se expressando nas redes sociais. Se por um lado continuam imersos em uma fantasia onde o ateísmo enquanto descrença provida de lógica própria não existe, por outro chocam-se (em todos os sentidos) com os descrentes e declaram-lhes aversão. O que dá origem à estereotipação lógica de associar a descrença ateísta/”falta de Deus no coração” à criminalidade e à perversidade e, por tabela, taxar ateus como imorais e potenciais criminosos.
O perfil @ateus_atentos no Twitter, pelo qual o ativista em prol do respeito aos ateus Daniel Sottomaior denuncia, com minha colaboração, a ateofobia naquela rede-microblog, escancara quase diariamente essa endemia de ateofobia. Os ditados preconceituosos e aversivos que encontra e expõe via retweets nos permitem concluir o que este artigo teoriza: a intolerância contra quem não acredita em Deus se explica tanto pela fantasia religiosa em que se nega a existência de uma lógica não teísta como pela reação de estranhamento hostil à até então ignorada existência de ateus, mais um terceiro motivo que explico adiante.
Ideal e teoricamente isso só diminuiria até o status de comportamento minoritário e socialmente inaceito quando as igrejas em geral começassem a aceitar a existência dos descrentes em Deus e buscar interpretações bíblicas que incentivem a coexistência respeitosa entre cristãos e ateístas.
Porém isso é muito improvável hoje em dia, uma vez que nem mesmo a existência de uma categoria ainda mais óbvia e tornada visível, a dos LGBT, é aceita e tolerada pela esmagadora maioria das denominações cristãs. E o pior é que lésbicas e gays são discriminad@s pelos cristãos por muito menos -– amar pessoas do mesmo sexo –- do que os ateus que, quando incitados, negam a existência da entidade suprema do cristianismo, algo inaceitável e hediondo para muitos religiosos.
E há um segundo motivo que na prática inviabiliza a generalização do respeito aos descrentes: a existência de ateus prósperos e de “bom coração”, que respeitam as leis humanas e portam muitas virtudes sem precisarem se escorar nos ditames morais cristãos, prova que é sim possível uma vida reta, ética e próspera sem Deus. Assim o ateísmo acaba sendo encarado como uma ameaça aos desígnios das igrejas de se manterem em crescimento e arrogarem o monopólio sobre a moral humana.
Aceitar a existência de uma lógica de vida desprovida da divindade seria abrir as portas dos templos para os fiéis evadirem do controle social e psicológico exercido pelos sacerdotes, bispos e padres. E isso contraria os interesses daqueles clérigos mais inescrupulosos, avessos à liberdade de aderir e desaderir de religiões por livre-arbítrio.
Isso explica grande parte do porquê de as igrejas não adotarem de bom grado o princípio da tolerância para com ateus e preferirem manter os fiéis presos na Caverna de Platão onde o ateísmo é nada mais do que a sombria “falta de Deus” e, logo, a compilação de tudo o que é mau, imoral e perigoso. E nos revela mais uma razão, talvez a mais forte de todas, para a ateofobia que se escancara tantas vezes em que pedófilos, racistas e assassinos são denunciados à sociedade: os clérigos incitam a intolerância.
Essa incitação ganha toda uma lógica quando é observado o seu paralelo atualmente mais em evidência, a incitação dos crentes à homofobia por parte dos regentes das igrejas. Estes, ao mesmo tempo em que mantêm íntegra a Caverna de Platão sem ateísmo, açulam a caluniosa e difamatória crença de que quem deixa de crer em Deus se entrega às trevas, ao capeta, se torna mau como o Pica-Pau e compra uma passagem só de ida para o inferno eterno. Isso de uma forma um tanto parecida com quando incitam o ódio contra quem desobedece aos ditames homofóbicos do Pentateuco bíblico.
Assim, esperar que as denominações cristãs voluntariamente façam as pazes com os incrédulos acaba sendo uma ingenuidade. A solução para a inaceitabilização social da ateofobia é bem mais complicada do que isso. Penso que há pelo menos duas alternativas realistas hoje: levar a cabo iniciativas neoateístas de contrapropagandeamento das religiões mais intolerantes e retromorais, ou incentivar-se entre os ateus a disposição de se reunirem em torno da causa antipreconceito, tornando esta a segunda coisa em comum entre grande parte deles (a primeira é a própria descrença em deuses).
Como não sou um neoateu que deseja o fim de qualquer forma de crença religiosa -– embora deseje sim o colapso daquelas denominações eclesiais, hoje tão numerosas, que têm a fanatização, a atrofização intelectual, a retromoralidade e o açulamento de intolerâncias como praxes –-, eu aposto na segunda opção. A questão é como torná-la realidade neste contexto atual em que nem mesmo os próprios ateus, talvez em sua maioria, reconhecem ser alvos de preconceito e discriminação e tantos em sua categoria rejeitam associar-se a grupos de mobilização seja lá quais forem. [Adendo da Lola: eu incluo outro entrave -- infelizmente, há muitos ateus machistas, homofóbicos e racistas. Ficaria estranho se eles abraçassem uma causa antipreconceito].