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GUEST POST: DOIS ESTUPROS, UM ABORTO, UMA CHANCE PARA RECOMEÇAR
O aborto é permitido no Brasil em três casos: fetos anencéfalos, risco de vida para a gestante, e gravidez decorrente de estupro.
É uma das legislações mais restritivas do planeta. E vale lembrar que, mesmo com o aborto permitido nesses casos, encontrar atendimento para interromper a gravidez é dificílimo.
Há muitos homens no Congresso querendo tirar o direito das mulheres ao aborto até nesses casos. Para esses fundamentalistas religiosos, o embrião ou feto vale mais do que a vida da mulher ou menina (já que muitas das vítimas de estupro que engravidam são meninas com menos de 14 anos).
A Ana corajosamente conta o que ela passou.
Quando eu fui estuprada pela primeira vez, eu nunca havia visto um pênis, nem em foto, nem em vídeo, somente desenhos nos livros de biologia da escola. Eu tinha quinze anos. Não lembro muito bem o ocorreu durante o estupro, mas lembro em detalhes dos três dias seguidos de calafrios, dores pelo corpo, dificuldade pra urinar e sentar, e uma dor de cabeça que não dava trégua.
Também não me abandonaram durante mais de 20 anos a culpa e a vergonha por ter entrado em choque ao perceber que seria estuprada. Eu ainda não havia sequer compreendido e aceitado que havia sido estuprada quando, pouco mais de três anos depois, fui vítima de um segundo estupro.
Se o primeiro estupro havia me tirado quase todos os sonhos, o segundo me tirou a vontade de viver, principalmente quando descobri que estava grávida. Quis morrer, até ingeri uma quantidade enorme de remédios na esperança de, quem sabe, ter uma morte tranquila. Consegui somente uma lavagem estomacal e uma centena de sermões do médico e das enfermeiras que me atenderam, dos meus parentes e vizinhos. Todos achavam que eu tinha uma vida inteira para viver, que era bonita, tinha uma vida boa e nada do que reclamar.
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Todos que são contra também |
Enquanto isso, ninguém ao menos desconfiava que no meu útero continuava a crescer um feto que carregava metade do DNA do meu agressor. Sofri calada. Não tinha coragem de ir à polícia e me submeter aos constrangedores interrogatórios, exames médicos, ao julgamento e aos sermões que iria sofrer na delegacia. Por isso, pedi a um ex-namorado que me ajudasse com o aborto.
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No Paraguai o aborto é proibido em casos de estupro. Uma menina de 10 anos que havia sido estuprada foi impedida de abortar. É isso que queremos no Brasil? |
Desde que descobri a gravidez tinha pesadelos de que a criança era um monstro que consumia minhas vísceras ou que daria a luz a um demônio. Não consigo imaginar como amamentaria uma criança que seria metade do meu agressor. Nunca me restou dúvidas que toda vez que eu olhasse para o rosto dela, veria passar um filme na minha cabeça e vivenciaria repetidamente a angústia que passei durante aqueles instantes e a sensação de morte que tive nos braços dos meus estupradores. O mais lógico seria culpar a criança por todo e qualquer problema ou sofrimento que eu viesse a ter. Nenhuma criança mereceria ser tratada assim.
Optei pelo aborto como estratégia de sobrevivência. Ainda assim ainda me restava enfrentar outro drama. Onde conseguir interromper essa gravidez de forma segura? Eu estava sozinha, não tinha dinheiro e ninguém sabia que eu havia sido estuprada. Para complicar ainda mais a situação, a única pessoa que poderia me ajudar com o abortivo era o ex-namorado (que se tivesse prestado atenção no exame perceberia que não teria como ser o pai, e que por sinal era contra aborto).
Mesmo correndo o risco de não conseguir apoio para o aborto, recorri a ele dizendo que estava grávida e que ele seria o pai e logo revelei que não tinha interesse em levar a gravidez adiante e que precisava de dinheiro para interromper a gravidez. Interessante é que apesar de ouvi-lo dizer que o aborto era crime hediondo, que a criança não tinha responsabilidade pelos erros dos pais, ele sequer pensou em me dissuadir da ideia. Comprou ele mesmo os comprimidos abortivos e ainda me acompanhou durante o uso.
Enfim, coloquei o remédio por volta das 6 horas da manhã e por volta das 6:45 comecei a sentir as contrações. Em torno das 10 horas passei a sangrar e lá pelas 16 horas as cólicas começaram a diminuir. Sangrei por mais quatro dias. Uma semana depois fiz novamente o teste de gravidez. Ao receber o resultado negativo senti que eu realmente poderia seguir minha vida sem carregar meu agressor comigo.
Mesmo não tendo me restado um filho para me fazer lembrar todo o horror que passei, foram necessários mais de 20 anos pra que pudesse falar sobre os estupros ou pensar neles sem que eu sentisse nojo de mim, vontade de morrer ou de me imolar. Hoje ainda trago marcas no corpo e na alma por conta da violência. No entanto, eu superei toda dor e medo, não tenho mais insônia ou acordo no meio da noite em sobressalto com pesadelos.
Há mais de 5 anos não bebo (eu bebia muito), não tenho mais ideias suicidas (eu vivia planejando suicídio) e hoje consigo abraçar naturalmente, sem sentir náuseas pelo contato físico. Infelizmente, outras mulheres não têm a chance que eu tive, algumas se suicidam, outras passarão ou passaram a vida inteira tendo uma vida de cão.
Isso que contei aconteceu no início da década de 90. Hoje tenho 41 anos, um casamento estável que está beirando 18 anos. Não tenho filhos porque tive a oportunidade de escolher. Outras mulheres não têm a chance que eu tive de recomeçar, de seguir em frente sem ter que assumir a responsabilidade por um filho que ela não desejou ou de carregar o fruto de uma violência no ventre por nove meses -- um feto pelo qual ela talvez não desenvolva nenhum afeto.
Não se pode querer deliberadamente perpetuar o estupro de uma mulher. Eu precisava do aborto tanto quanto eu precisava respirar. Muitas outras mulheres também precisam. Tenho todo o respeito por mulheres que decidem ter um filho gerado por estupro, mas obrigar todas a prosseguirem com a gravidez me parece de uma desumanidade sem tamanho.
Leia a resposta da Ana aos comentários: Parem de culpar a vítima, p*rra!
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