GUEST POST: ENGRAVIDEI DUAS VEZES
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GUEST POST: ENGRAVIDEI DUAS VEZES


Publico hoje um guest post de uma moça que, por motivos óbvios, será mantida anônima. Ela não é perfeita (ninguém é), não foi a primeira a fazer o que fez, e certamente não será a última. Abortos ocorrem em todo lugar do mundo, desde que o mundo é mundo. A diferença é que em alguns países ele é seguro para a mulher. Em outros, como o nosso, apenas algumas classes sociais podem fazê-lo sem sofrer riscos. Portanto, a legalização do aborto é uma questão de justiça social. (E pra quem pensa que a vida começa no momento da concepção, lembre-se que a sua opinião, com amplas raízes religiosas, está longe de ser compartilhada por tod@s).

Estava com 20 anos quando conheci um cara por quem me apaixonei instantaneamente. Eu tinha a auto estima muito baixa, e ele era bonito e se fez de interessante. A gente tinha uma afinidade rara: o senso de humor era parecido, gostávamos das mesmas coisas, o sexo era pra lá de 'uau', tínhamos umas brincadeiras, uns rituais bonitos, um código nosso. Ele me ensinou a pilotar moto e me elogiava, dizia que eu aprendia muito rápido. Eu realmente me sentia bem com ele. Carente até o último fio de cabelo, eu queria me fundir àqele homem, se possível.
Ele tinha um gravíssimo problema de fertilidade. E eu nunca tomei pílula, porque acho muito agressivo ao organismo e porque não me dei com nenhum método que tentei até hoje. A gente transava sem camisinha.
Eu dizia a ele que na prática a gente estava tentando um filho e ele dizia que adoraria uma 'Fulaninha' (dizia o diminutivo do meu nome). Mas acho que não temíamos a gravidez, porque o problema dele era realmente grave.
E aí aconteceu: engravidei. Morávamos em cidades diferentes, e por três meses só eu fui até ele. Ele era meu namorado, meu parceiro, eu pensava. Queria contar o fato aos meus pais junto com ele, mas ele enrolava.
Quando se completaram três meses, contei a minha mãe. Na minha cabeça, eu havia esperado todo esse tempo porque achava que a partir daí não poderia mais abortar, mas hoje vejo que talvez fosse porque era o limite para poder resolver a situação.
Meu pai disse: "Manda ele vir este final de semana conversar." Ele não foi e eu me dei conta de que cuidaria sozinha de um filho, ou daria mais atribuições aos meus pais já cansados... Fora o dinheiro, que eu não ia ter. (Eu havia abandonado a faculdade e estava pensando no que queria ou podia fazer. E eu não queria transferir a responsabilidade de criar um filho aos meus pais).
Na segunda-feira pela manhã, meu pai foi ao meu quarto.: "Estou com o coração despedaçado, mas acho que a melhor solução é um aborto. O que você acha?" E eu respondi: "Eu concordo com você, pai."
E fomos os três, eu e meus pais, em direção à outra cidade, onde havia uma clínica até famosa e bem chique, para realizar a interrupção da gravidez.
Quando voltamos de viagem, alguns dias depois do tempo de repouso recomendado, o telefone tocou. Era ele. Ele dizendo que havia ligado insistentemente para a minha casa e que imaginava o que havia se dado. Eu confirmei. Sei que em seguida ele foi até a minha cidade e transamos duas vezes. Engravidei de novo. De novo ele sumiu, de novo tudo.
Acho que o que me fez engravidar foram duas coisas: a falta de auto estima e o machismo. Porque essa coisa de não usar camisinha era porque eu gostava de me sentir "dele". Da segunda vez eu disse pra gente usar e ele disse: "Vamos fazer como sempre fizemos."
Ainda nos falamos mais uma vez, e ele foi muito agressivo e me ameaçou. Meu pai ficou revoltado, mas eu finalmente havia caído em mim e o tranquilizei: "Pai, se trata de um grande covarde. Ele mesmo sabe disso e não vai fazer nada."
Nunca mais tive notícias dele e desconfio de que se ele passasse por mim, eu poderia nem reconhecê-lo.
Hoje nem raiva eu tenho dele. Era um poço de contradição, talvez isso tenha me salvado da amargura irrestrita ― isso e a minha capacidade de, com o tempo, processar toda a situação. Ele ao mesmo tempo que minava a minha auto estima, foi das pessoas que mais me elogiou na vida. E ele também me incitava a reagir, muitas vezes. Incentivava talvez seja um termo mais cabível. Mas eu estava impassivelmente passiva.
Eu justificava tanta submissão mentalmente: tanta passividade era um meio de reação.
Foi uma história muito complexa e marcante, mas não tenho mágoas e nem trauma. Nem arrependimento. Não sofro pelo que fiz, não fico imaginando quantos anos teria a criança... Nada disso.
Como já disse, para mim é muito claro que engravidei por conta de falta de auto estima e pelo machismo (a primeira muito ligada ao segundo), e isso pode soar inconsistente: "Mas seus pais te levaram à clínica, como você pode dizer que teve uma educação machista?"
Meus pais me acham uma coitada por eu ter passado pelo que passei. Minha mãe acredita que eu não deva contar isso a um parceiro. Ela acha que a atitude é tão indigna que ninguém iria 'me querer' sabendo disso. Eu acho que não tenho a obrigação de contar nem isso nem nada do meu passado, necessariamente, a alguém.
Meu pai já me chamou de 'doidinha', de vagabunda, de piranha... E sempre que podia, tocava no assunto, achando que me feriria. Isso fere a ele, não a mim. O assunto é tranquilo na minha cabeça. Aborto não é nada agradável, não deve ser feito a torto e a direito, é a última coisa a se recorrer. O melhor é não engravidar. O melhor é prevenir a gravidez. Se não preveniu (ou a tentativa de prevenção falhou ― como uma camisinha furar), pode-se recorrer à pílula do dia seguinte (apesar de ser uma bomba hormonal).
E não defendo o aborto porque o pratiquei, essa lógica é invertida. Fiz aborto porque entendo que ele pode ser o melhor caminho, em algumas situações, pra algumas pessoas.
Estive nesse contexto por duas vezes e não me furtei a recorrer à melhor opção a que tive acesso.




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