GUEST POST: UMA CELEBRIDADE ME FEZ LEMBRAR MEU ESTUPRO
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GUEST POST: UMA CELEBRIDADE ME FEZ LEMBRAR MEU ESTUPRO


Não sei como existe gente que menospreza a importância que pessoas famosas têm para influenciar as pessoas. 
Esses dias dei uma entrevista pra rádio, e a jornalista me perguntou o que acontecia quando uma celebridade como a Xuxa narrava seu abuso. Bom, acontece isso que a P. me contou quase um ano atrás:

Desde domingo estou com uma dor de estômago horrível. Não tem remédio que melhore. Mas eu sei que não é nada físico. Hoje, nem andar eu conseguia.
Sabe, eu estou “engolindo” meus medos, minhas angústias e minha ansiedade.
Xuxa, por quem eu fui apaixonada na infância e depois deixei pra lá, deu uma entrevista e disse que foi abusada.
E eu sei o que ela sentiu, porque eu também fui.
Poderia dizer que fui abusada por três pessoas diferentes: por um amigo dos meus pais, e por dois namorados. Só que meu lado machista ainda me faz acreditar que com os dois namorados eu “tinha o direito de ser abusada”, porque com um, enquanto eu dormia, ele passava a mão em mim e a colocava na minha vagina. Acordei assustada da primeira vez que isso aconteceu e os pensamentos eram dúbios: "eu não quero isso, mas se eu acordar ele achará que eu não estava dormindo e queria, que gostei. Mas eu não quero. Eu tenho que acordar. Eu não posso acordar. O que eu faço?"
Com o segundo namorado a situação era bem mais complicada. Ele me batia. Ele me segurou e fez sexo à força comigo, e eu engravidei. Mas ele era meu namorado e minha situação de namorada era deixá-lo aproveitar. Né? NÃO!
Só que só hoje eu percebo isso. Naquela época eu tinha vergonha, claro. Inclusive de dizer NÃO. Como assim dizer não? O que eles vão pensar de mim? Eu não era a namorada? Eu tinha que ceder. Eu tinha que deixá-los brincar comigo o quanto quisessem.
Eu já tinha aprendido que mulher não tem voz. Não mulher com a minha história de vida.
Aos 10 anos, um amigo dos meus pais me pegou à força e me beijou. No corredor do apartamento em que morávamos. De 110 m2. Uma amiga viu. E perguntou: "ele te beijou também?"
Eu não fui a primeira. Ele não era réu primário.
Mas como contar para os meus pais? Por que eu contaria? Eu sabia que ele tinha feito alguma coisa errada e tinha certeza que a culpa era minha. Sabe por quê?
Umas semanas antes, numa festa, essa amiga aí de cima me convidou para espionar o L. no banheiro, enquanto ele fazia xixi. Eu, muito criançona, topei. Ela me deu pézinho e eu subi pela janela. Ele estava lavando a mão e eu desci.
No dia em que o L. me beijou ele disse: "isso é para você aprender a nunca espionar os outros enquanto estão no banheiro".
Hoje eu digo que a atitude dele é típica, já que imagina eu contar pros meus pais que ele me beijou porque eu o vi no banheiro. Eu ia me expor! Eu era a culpada.
Depois desse incidente eu MORRIA de medo e nojo dele. Aquela língua passeando pela minha boca e a mão dele na minha vagina e passando pela minha perna era terrível demais. Eu bloqueei isso da minha mente.
Só que meus pais eram muito amigos dele e da esposa. Muito. E sempre nos víamos. Toda vez que ele ia me cumprimentar ele me pegava no colo e me dava um abraço e um beijo super melecado e babado na bochecha. Era asqueroso. Ainda mais que ele pressionava minhas costas para dar aquela apertada no pênis dele. Eu era muito nova e não sabia nada sobre sexo.
Com 12 para 13 anos ele foi além. Ele me estuprou. Posso contar que na época eu nem sabia que aquilo era sexo? Eu ainda estava tentando descobrir o que era beijar. Foi na casa dele. Foi durante um churrasco. Foi fácil. E ele me ameaçou dizendo que se eu contasse, ele mataria meus pais. Eu fiquei caladinha.
Tinha menstruado pela primeira vez um mês antes. Como no estupro sangrou muito, eu achei, inocentemente, que ele tinha me visto menstruada. Fiquei COM VERGONHA DE ESTAR MENSTRUADA depois que fui estuprada. Tem noção? Aos 13 anos eu comecei a beber, fumar e usar drogas. Parei com 18. E banalizei o sexo.
Até os meus 17 anos eu lembro dele me abraçando e se encostando em mim. Lembro do MEDO que eu tinha dele. Mas não tinha para quem falar, como me defender.
Um dia, sozinha em casa, ele ligou pra falar com meus pais e eu disse que eles não estavam. Ele disse: "Estou indo até ai". Eu ainda argumentei: "Mas eles não estão. Você vai esperá-los?"
Eu senti um medo enorme. Liguei pro meu namorado na época e contei o que aconteceu. Foi a primeira pessoa pra quem eu contava. Sabe o que ele me disse? "P, mas você se expõe muito! Você usa essas blusinhas com os peitos que tem. A gente colhe aquilo que planta".
De novo, me senti SUPER culpada. Claro. Eu era o problema. Sempre fui. Meus pais também diziam isso. Por que seria diferente? Fumei tanta maconha e bebi tanto aquele dia que sei lá se ele foi ou não. Se ficou tocando campainha eu não sei. Mas não tive qualquer contato com ele. E a vergonha de ter contado pro meu namorado que eu era uma biscate?
Eu me perguntava: "Mas com 12 anos quem comprava minhas roupas era a minha mãe. Eu usava roupas de criança. Eu tinha vergonha do meu corpo. Será que foi por causa da roupa mesmo?"
Não tendo respostas, acreditava que era por causa da roupa. Na verdade não. Eu acreditava que era porque fui nadar de biquíni e porque resolvi tomar banho PELADA depois da piscina. E foi nesse momento que ele se aproveitou de mim, DESTRANCANDO a porta do banheiro com uma ferramenta. Mas eu era a culpada.
Sabe o que pensei depois? Ahh, se eu sou tão vagabunda assim, e não posso dizer não, o melhor que tenho a fazer é ceder.
Cada carinha que eu beijava eu já transava, porque o medo de dizer não e não ser respeitada era grande. Melhor era dizer sim pra não sofrer!
Xuxa me fez rever a história (como faço muitas e muitas vezes, depois faço paralelo com minhas filhas) e me fez cair numa questão: DENUNCIAR OU NÃO?
Na minha santa inocência ele tinha feito isso comigo e dado o beijo naquela amiga. Mas não. Outras coisas já estouraram, ele já foi acusado e absolvido de estupro. Com a própria sobrinha. Imagino ainda mais umas três pessoas, no mínimo, que sempre estavam juntas conosco. Só que ainda sinto um pouco de culpa e vergonha de me expor. Parece que falando isso eu estou falando: "Gente, senta aqui que vou contar em público pra quem quer ouvir como foi minha primeira vez. Como aos 12 anos um cara 30 anos mais velho fez sexo e gozou em mim".
Será que conto como senti vergonha de menstruar? Dele me ver menstruada?
Será que conto como minha mãe me dizia enquanto eu não saía de frente do computador: "P, vai brincar, ficar menstruada não é o fim do mundo"?
Será que conto como minhas amigas faziam chacota de quem transava? E de como eu achava que nadar de biquíni era praticamente um convite ao sexo e só nadei de maiô COM CAMISETA até uns 14 anos -– porque depois disso eu saía transado com todo mundo mesmo?
E de como muitas vezes me sinto culpada? E me sinto aquela criancinha indefesa que ainda acha que podia ter feito alguma coisa a mais pra se defender?
E de como fiquei do lado do meu namorado (o que enfiava a mão na minha vagina enquanto eu dormia) porque minha amiga disse que ele a tinha estuprado, mas no dia seguinte ela deu risada, e eu pensava: "Cara, ela não foi estuprada, porque quando isso aconteceu comigo eu só queria morrer, e ela dá risada!"
Será que conto como me arrependo disso?
As fotos com os cartazes são do Project Unbreakable, belíssimo (e tristíssimo) projeto que mostra as palavras que estupradores disseram a suas vítimas. Eu já tinha falado dele aqui.




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