GUEST POST: HOMENS DE CONFIANÇA NÃO ESTUPRAM
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GUEST POST: HOMENS DE CONFIANÇA NÃO ESTUPRAM



Difícil arranjar imagens p/este post! "Homens Respeitáveis", tela de Andrew Stevovich

Este relato terrível que S. me enviou é mais que um relato. É quase um manifesto. Lembre-se dele na próxima vez que alguém culpar a vítima ou sugerir que só monstros estupram.

"Estuprador é um monstro", "estuprador merece pena de morte", repete a sociedade -- é quase um consenso, é algo indiscutível. Ninguém gosta de estuprador, ninguém apóia estuprador, ora. Inclusive, esse tema nem precisa ser debatido. Afinal, "estuprador é um doente", então não muda nada discutir isso ou não. Porque, para a sociedade, estuprador é aquele cara que sai à noite, em um impulso incontrolável, em busca de menininhas indefesas -- como sua mãe e sua irmã, claro --, as quais deverão se debater e gritar muito, mostrando que não queriam MESMO transar. 
E estupradores merecem pena de morte ou castração porque, bem, ninguém acha que conhece um estuprador. Mas quando se entra em casos reais, a coisa muda de figura. Se a saia era curta, ela estava pedindo, então o cara não é tão monstro assim. Se ela já conhecia o estuprador, é óbvio que ela deve ter feito alguma coisa para seduzi-lo. Se ela estava bêbada, ela quis; afinal, bêbados mostram suas verdadeiras vontades. Se o cara era marido dela, bem, não foi exatamente um estupro, né? Ela tinha obrigação. E assim vão, caso a caso, culpando a vítima, tirando a sua voz, isentando os estupradores.
Para a sociedade, homens de confiança não estupram. E esses podem ser facilmente identificados. Assim como a gente olha prum estuprador e vê nele um carimbo na testa escrito "estuprador", homens de confiança também já vem carimbados como "de confiança". E esses não estupram.
Além de todas aquelas situações de terror pelas quais, me arrisco a dizer, todas as mulheres já passaram com desconhecidos, passei por algumas outras, com homens de confiança. Espero que o número de mulheres que também passaram por isso seja menor, embora não acredite.
Eu tinha cinco anos. Meu padrasto tinha um amigo de infância que estava precisando de dinheiro. Ofereceu, então, para o amigo pintar a nossa casa, consertar coisas, cuidar do jardim, etc. Ele era de confiança.
Eu só ia para a escola à tarde. De manhã eu e meu irmão ficávamos em casa com a babá. Não lembro muitos detalhes de como as situações se criavam, mas lembro perfeitamente de que ele me levava para o meu quarto, colocava algum desenho para eu assistir, me colocava sentada no colo dele, passava a mão por dentro das minhas calças e ficava tocando minha vagina durante o filme inteiro. Se eu dizia que queria sair, ele falava sussurando no meu ouvido que ele tinha sido legal em colocar o desenho para mim, que eu deveria ser legal com ele também. Ele pediu para eu não contar para ninguém. Nunca contei. Ainda me sinto culpada por "ter deixado", e eu tinha só cinco anos. Até hoje o encontro eventualmente, e o cumprimento, fingindo não lembrar. Ele age tão naturalmente que faz parecer que é tudo um delírio meu.
Eu tinha oito anos, um primo foi morar lá em casa. Ele tinha quinze. Era de confiança, da família. Ele fechava meus olhos e colocava algo na minha boca. Dizia que se eu não aceitasse, ele não brincaria mais comigo. Às vezes eu conseguia espiar, ou ele deixava, não sei bem, e eu via que era seu pau na minha boca. Ele pediu para eu não contar para ninguém. Nunca contei. Ainda me sinto culpada por "ter deixado", e eu tinha só oito anos. Nos encontramos nos eventos em família. Finjo não lembrar, ele age naturalmente, ninguém ali imagina o que houve, afinal, todo mundo ali deve "odiar estupradores". Inclusive ele.
Eu tinha doze anos. Um rapaz de vinte e três anos foi morar lá em casa. Ele era de confiança. Quando eu estava dormindo, ele entrava no meu quarto e ficava me masturbando. Acho que isso durou cerca de dois anos. Eu fingia que continuava dormindo, porque não sabia como reagir. Tinha medo. Passei anos sem conseguir dormir direito, acordando no meio da madrugada imaginando que tinha alguém ali. Ainda me sinto culpada por "ter deixado", e eu tinha só doze anos. Eu e ele ainda somos amigos. Finjo que nunca houve nada. Nunca falei do assunto com ninguém.
Eu tinha dezoito anos, era carnaval. Eram raras as vezes em que tinha bebido. Aquele dia bebi, passei mal, vomitei. Não conseguia caminhar sem alguém me ajudar. Mas, como acontece com alguns bêbados, fiquei teimosa e disse que não queria ir embora. Minhas amigas estavam cuidando de mim, quando chegou o meu melhor amigo. O cara que estava comigo todos os dias, que era quase um irmão. Ele falou "deixem que eu cuido dela". Ele era de confiança, era o meu melhor amigo, elas deixaram.
Ele me beijou. A cidade inteira, uma cidade pequena, viu nós dois juntos. Comentaram com conhecidos: "Eu sabia que ela era uma puta mesmo, vivia com ele pra cima e pra baixo e dizia que eram só amigos, que mentirosa". Quando eu já estava melhorando, lembro de ele dizer "Eu sei que você vai se arrepender depois, que você nunca teria ficado comigo se não estivesse muito bêbada". Ele sabia o que fazia. Em algum momento, já melhor, eu percebi: "Porra, eu não quero ficar com ele". Chamei minhas amigas e pedi: "me levem embora, por favor".
Passei os dias seguintes mal em casa, deprimida, chorando, me sentindo traída pelo meu melhor amigo, me sentindo abusada. Nunca mais falei com ele. Ele nunca mais me procurou. Talvez porque tenha conseguido o que queria, talvez porque saiba que errou, talvez apenas não se importe.
O que mais doeu? Os comentários de que no fundo eu sempre quis ficar com ele, só usei a bebedeira como desculpa para criar coragem. O fato de que eu estava sempre com ele, ou seja, de que tive várias oportunidades de ficar com ele e nunca quis, bem como o fato de que eu estava quase inconsciente quando ele me encontrou e o fato de eu sequer conseguir caminhar ou falar, nada disso importa para as pessoas. E aí eu senti que, por um lado, foi bom nunca ter contado para ninguém sobre as outras situações, pois doeu demais ter os dedos apontados me culpando por um abuso sofrido. Eu não suportaria ouvir mais disso.
E nenhum deles era um monstro. Eram todos homens de confiança.




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