GUEST POST: ÓDIO NÃO GERA AVANÇOS
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GUEST POST: ÓDIO NÃO GERA AVANÇOS


A A. me enviou este relato:

Gostaria muito de contar a minha experiência e o que tenho aprendido com ela.
Bom, tenho 21 anos. Meus pais se divorciaram quando eu tinha 4 anos, a partir de então sempre morei com a minha mãe. Ela trabalhava o dia inteiro e eu passava a tarde em casa com a empregada. Eu tinha 6 anos quando a primeira empregada que trabalhou em casa me molestou sexualmente. Eu não lembro bem dos detalhes. Lembro só dessa cena, e acho que foi só isso que aconteceu: eu sentada no braço do sofá, e ela me tocando e perguntando se eu gostava daquilo. Não contei pra minha mãe, mas pouquíssimo tempo depois ela contratou outra empregada. Eu não lembro o que eu pensava sobre aquilo naquela época. 
Com dez anos, fui passar pouco mais de uma semana na casa da minha tia, que tinha acabado de ter um bebê. O marido dela, o C., era meu tio preferido. Eu o adorava, ele me tratava super bem e sempre prometia me dar presentes. 
Acontece que um dia minha tia foi dormir, e ficamos só nós dois na sala vendo TV. Eu, desde pequena gostava que fizessem carinho em mim que causasse arrepios, sabe quando passamos a mão assim de leve na pele e os pelinhos arrepiam? Então. Aí lembro do meu tio fazendo isso em mim naquela noite. 
Quando fomos dormir, ele dormiu no quarto comigo pois minha tia estava dormindo com o bebê na cama. Não sei dizer porquê, eu pedi pra ele deitar comigo no colchão. Ele ficou fazendo esse "carinho" em mim, e eu dormi. Acordei no meio da noite com a mão dele praticamente dentro da minha calcinha. Fiquei muito assustada e pedi pra ele voltar pra cama dele. 
Isso mexeu muito comigo, eu pensava muito naquilo, e lembro que pouco tempo depois ele foi preso por porte de drogas. Lembro que eu sentia muita vontade de contar pra minha mãe, mas morria de medo -- medo do que as pessoas iriam pensar, me sentia culpada por ter deixado isso acontecer, além de ter perdido a confiança nas pessoas em geral. Tinha medo também da proporção que aquilo poderia tomar na família. 
Com onze anos eu e minha mãe fomos visitar uma amiga dela. O D., marido dessa amiga, era uma pessoa muito comunicativa, divertida, e começou a conversar comigo. Não lembro a ordem dos fatos, só lembro de nós dois no quarto, sentados na cama, ele sussurrando alguma coisa no meu ouvido, dizia que era um jogo, e eu paralisada, sem entender o que estava acontecendo ali. Depois lembro da gente usando o computador pra fazer tabelas de batalha naval. Ele pegou minha mão devagar e colocou em seu pênis por cima da calça e ficou esfregando. Eu lembro que fiquei em choque, sem reação. Mas me deu um click e tirei a mão, peguei o mouse e falei alguma coisa relacionada às tabelas. 
Depois lembro dele me chamando pra irmos no térreo do condomínio de prédios porque ele queria me mostrar alguma coisa. Eu fui, desconfiada. Fomos conversando e ele foi me levando até um canto escondido. De repente ele me agarrou por trás, e foi nesse momento que eu saí do estado de transe. Com uma força que veio não sei de onde, me soltei dele e já estava quase correndo, quando ele disse: "Olhá só essa porta, o que será que tem nesse quartinho, vamo vê?" 
Eu disse não e subi correndo, e fiquei sentada no sofá esperando minha mãe pra ir embora. Me dei conta de que poderia ter acontecido algo muito pior se eu tivesse aceitado entrar no quartinho. Percebi que eu tinha sido vítima de um pedófilo, de uma tentativa de abuso. 
No caminho pra casa, no carro, contei pra minha mãe, que é assistente social, e lida com isso todos os dias. 
Eu disse: "Mãe, preciso te contar uma coisa. Sabe aquele negócio de abuso sexual? Então, acho que o D. fez isso comigo". A partir daqui eu não me lembro do que aconteceu, mas segundo minha mãe, ela parou o carro e começou a perguntar o que tinha acontecido. Eu não respondia e só gritava com raiva, chorando, pra ela não fazer nada, pra não falar com ele, pra não contar pra ninguém. 
Eu tinha medo. Eu sabia que D., meu tio e a empregada estavam errados, mas ainda assim me sentia culpada e tinha medo. 
Nessa mesma época, eu sofria bullying na escola. Um tempo depois eu até fui a uma psicóloga. Mas não cheguei a falar sobre os abusos. Resolvi que era melhor abafar aquilo. Esquecer. Fingir que não tinha acontecido, superar.
Depois de um tempo, contei pras minhas amigas tudo o que tinha acontecido, e quando contava, falava com maturidade, como se tivesse acontecido há muito tempo. Eu tentava mostrar que tinha superado aquilo, e eu realmente acreditava que tinha superado. 
Na adolescência eu dizia que já tinha superado, que nem tinha sido nada de mais, que tinha casos muito piores que o meu. Falava sobre sexo numa boa. 
Mas demorei pra transar pela primeira vez. Na minha quinta relação sexual, passei por uma situação estranha, e na sétima vez também. Ambas com caras diferentes. Hoje em dia, eu consigo enxergar que essas duas situações estranhas foram tentativas de estupro. Não aquele estupro que um cara aparece do nada, te leva pro mato e acaba com a sua vida. Não. Foram tentativas de forçar algo que eu não queria, e que por mais que eu dissesse não, eles insistiam. E o jeito que eu encontrei de sair da situação, foi me submetendo, foi aceitando, pra que algo pior não acontecesse ali.
Depois disso, comecei a me dar conta de que alguma coisa estava errada.
Meses depois, assisti ao filme As Vantagens de Ser Invisível e me identifiquei tremendamente. Chorei litros. Alguma coisa tinha vindo à tona em mim. 
Passados mais alguns meses, entrei em contato com o feminismo. Comecei a descobrir o que era. Vi que era totalmente o contrário do que eu pensava que fosse. Comecei a entender o que era patriarcado. E aquilo iluminou todas as minhas dúvidas, todos aqueles incômodos constantes. 
E o meu passado voltou com tudo. Voltou a me assombrar como se dissesse: "Você ainda tem pendências a resolver comigo, mocinha, agora não tem escapatória". Comecei a falar sobre o meu passado, e conforme eu contava eu percebia o quanto aquilo me afetou sim, o quanto eu não tinha superado o fato de ter sido abusada na infância. Percebi que muito da minha insegurança, da minha dificuldade em confiar nos homens, em olhar nos olhos, eram consequências desses abusos. 
Falar sobre isso, e descobrir que muitas pessoas (bem próximas até) também passaram por situações parecidas ou piores, me deu muita força. Percebi que podemos e devemos lutar contra o machismo que nos oprime todos os dias, e está tão enraizado na nossa cultura. 
Mas não vim aqui apenas contar a minha experiência. 
Li um texto que você postou de um estuprador pedindo perdão e dizendo que se arrepende muito do que fez. Admiro muito a sua coragem de postá-lo no blog,
Acredito na reabilitação do ser humano. Claro que o que ele fez foi horrível, causou danos na vida das vítimas, mas acho que ele também sofre com o que fez, ficou bem claro pelo que disse. E não tem punição pior que essa. Você saber que arruinou a vida de alguém. 
Depois de todos esses anos, eu me perdoei. Eu era só uma criança. E perdoei as pessoas que me fizeram o que fizeram, mesmo elas nunca tendo me pedido perdão. Eu consigo enxergá-los como seres humanos, não monstros. Consigo enxergar que eles podem até mesmo ter sido vítimas na infância, e que talvez eles se sintam mal pelo que fizeram.
Estuprador tem que ser preso? Claro! Pedófilo tem que ser preso? Claro! 
Mas não acho que ser preso hoje em dia leve ao arrependimento (talvez em alguns casos sim), pelo contrário. Só piora. Então, eles merecem a morte? Não. Não estamos mais na idade da pedra onde tudo se resolvia pela lei de talião, olho por olho, dente por dente. Nós evoluímos. 
E se uma pessoa que comete um crime, se arrepende do que fez, não deveríamos dar a ela uma chance? Se ela se arrepende, não quer dizer que ela consegue, assim como nós (e talvez até por nossa causa) enxergar que o que ela fez foi muito errado, foi horrível? Não quer dizer que ela quer se tornar alguém melhor? Então. Ela precisa de ajuda. 
As feministas não deveriam gerar mais ódio, propagar ódio pelo ódio. O feminismo tem que ir além, tem que ir na raiz do problema. Lutar por um mundo melhor é acreditar no ser humano, por mais que a humanidade nos dê motivo para desacreditar, para jogar tudo pro alto, chutar o balde. Mas não é assim que vamos acabar com o machismo. 
E ele não vai acabar tão cedo. 
É claro que se eu tivesse sido estuprada, a minha primeira reação seria querer matar meu estuprador, ou sei lá, se alguém fizesse algo do tipo a alguma pessoa próxima, também sentiria muita raiva e vontade de me vingar. Mas, será que isso resolveria a tormenta interior, a catástrofe psicológica e emocional? 
Temos que lutar com todas as nossas possibilidades para a conscientização das pessoas. É uma luta diária. Nos deparamos todos os dias com pensamentos que culpabilizam as vítimas de estupro ou abuso, ou que oprimem de uma maneira geral as mulheres, as lésbicas, os gays, os negros, os pobres. 
Cultivar e propagar esses sentimentos de ódio não nos torna pessoas melhores e nem torna o mundo um lugar melhor. Não gera nenhum avanço.

Meu comentário: Obrigada pelo relato, muito forte, bem escrito, cheio de reflexões. Você é super madura pra uma menina de 21 anos. Parabéns, querida!
Só que tem uma coisa: no final do texto, você diz: "É claro que se eu tivesse sido estuprada...". A., você FOI estuprada. Pelo menos segundo as leis brasileiras de 2009. Não é só penetração que é estupro.
Fico muito feliz que, apesar de tudo que você sofreu, você não queira o olho por olho pra quem te abusou. E fico feliz que você esteja bem agora. Você é linda! É uma guerreira, uma sobrevivente.
Concordo contigo sobre o feminismo não propagar ódio. Entendo o ódio como um sentimento legítimo (apesar de nada saudável) de uma vítima. 
Não sou eu que vou falar pra ela o que ela deve sentir, como ela irá superar o trauma. Mas o ódio como estratégia de um movimento, de uma ação coletiva, pra mim soa como um tremendo tiro no pé. Porque, como você disse, o ódio não resolve nada. Ódio mal permite análises.
Denúncia, julgamento, condenação e punição de estupradores -- sempre. Mas com a possibilidade real da reabilitação. Ódio para sempre, não. 




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