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GUEST POST: NÃO QUERO SER UMA ATIVISTA LIMPINHA E CHEIROSA
Meu primeiro contato com o veganismo não tem mais que seis anos, quando eu dava algumas poucas aulas de inglês numa escola particular, e pedi a meus alunos adolescentes que apresentassem temas de seu interesse. Um aluno veio com o assunto de que é cruel consumir animais, e trouxe vários panfletos do PETA (People for the Ethical Treatment of Animals), alguns bem difíceis de encarar. Desde então eu me convenci: a maior parte de nós só consegue comer carne se não pensar de onde vem essa carne. É aquilo que me espantou em Madagascar, desenho animado em que um leão convive harmoniosamente com uma zebra (apesar de ter fantasias carnívoras com ela): a única carne consumida durante o filme vem de peixes. E olha só a coincidência: os peixes são dos poucos animais que não falam nem têm nome no desenho. Assim fica mais fácil devorá-los. Mas claro que o público infantil é poupado de ver o peixe sendo fisgado, morrer sufocado ou descamado. Ele já chega à mesa como sashimi! Eu amo os animais (não de todas as espécies, mas o especismo é assunto para um futuro guest post), e pra mim seria mais coerente não comê-los, ser vegetariana. Ser vegana eu realmente acho muito distante, principalmente devido a minha paixão por queijo e chocolate, esses alimentos que, a meu ver, ou ficam muito caros ou bem diferentes quando feitos com soja. Mas vegetariana eu devia ser. O problema é que adoro carne. Então o que faço, e reconheço que é muito pouco, é reduzir ao máximo o consumo de carne aqui em casa. Esses dias, inspirada pelas receitas da Deborah, fiz uma moqueca vegana, e ficou ótima. Percebi também que meu "jantar" de quase todas as noites, sanduíche de queijo, presunto e tomate, não perde a graça se eu tirar o presunto. Então tem dois meses que não compramos mais presunto (o maridão nunca foi muito fã). São pequenos gestos que fazem com que eu diminua a minha culpa. Porque sim, eu me sinto culpada em explorar animais e contribuir para que eles só tenham um propósito na vida: me servir. Se condeno a exploração de seres humanos por outros seres humanos, como posso fechar os olhos para a exploração de animais por seres humanos?
Aqui entra de novo a Deborah, uma blogueira que respeito muitíssimo e que, como já disse, tem me influenciado. Pedi pra ela escrever um guest post sobre veganismo, e ei-lo aqui. Recomendo também o FAQ Vegan que ela fez.
Minha empatia por animais existe desde a memória mais remota. Quando eu era muito pequena morávamos perto de um homem que abatia porcos com machadadas, e o que ouvíamos ao passar em frente me assombrava. Meu primeiro animal de estimação foi uma cadela, já tive gatos, coelhos, porquinhos da índia, tartaruga, peixes e até um passarinho (deixei a gaiola aberta de propósito). Ser vegetariana era um destino quase óbvio, e esse “quase” se deve aos fatores que me impediram de ser vegetariana antes de 2007. Um dos maiores obstáculos em enxergar o vegetarianismo como possibilidade concreta é a desassociação entre uma coxa de frango e seu lugar de origem. Assim que iniciei o vegetarianismo consumia laticínios e ovos (conhecida como dieta Ovo-Lacto). Com mais pesquisa reconheci que não comia bois, frangos e peixes, todavia não resguardava seus equivalentes femininos (vacas e galinhas), não me alimentava de seus “filhos” e sim das “mães”. Não é curioso que viver no patriarcado faz com que até mesmo as espécies designadas a nossa alimentação sofram opressões distintas baseadas no gênero? Em cativeiro bois vivem menos e logo vão ao abate; as fêmeas sobrevivem enquanto são “produtivas”, e depois são descartadas. Em nome de... um bolo de chocolate?O livre pensamento me liberou de pressões estéticas entre outras imposições que carreguei, possibilitando que me identificasse com o feminismo e o ateísmo. O discurso adotado enquanto militante foi de esclarecer o quanto o gênero ou a não-crença em determinada denominação religiosa não deve cercear a emancipação coletiva.Enxergar a opressão que sofremos diretamente pode ser mais simples, mas também é justo reconhecermos os privilégios que temos acesso: mulheres negras e pobres possuem realidades antagônicas em comparação com mulheres brancas de classe-média; assim como um rapaz surdo, mudo e gay experimenta preconceitos que a maioria de nós sequer imagina. Existe machismo dentro da esquerda e do movimento estudantil, existe homofobia no movimento negro e elitismo no meio LGBTTT. Quem já conversou e/ou convive nesses espaços com seus integrantes pode constatar isso. Não que seja a regra, mas o medo em debater assuntos “paralelos” é desvirtuar aqueles que já têm muita dificuldade em se articular: as minorias sociais.Isso pode impedir que as lutas coexistam. Se a luta de classes deve ser prioritária, como encobrir o fato de que trabalhadoras recebem menor salário que homens? Como ignorar o trabalho doméstico ser quase que em totalidade exercido por mulheres negras? Por que um homem precisa de uma mulher para preparar sua refeição? Se não sua mãe ou esposa, provavelmente outra fará a tarefa. Em semelhante receio (invisibilizar outras lutas que julgo importantíssimas), optei por não expor tanto quanto gostaria as motivações e desdobramentos em seguir a dieta e filosofia Vegan. O maior “inconveniente” não é pessoal, o difícil é a intolerância dos que se sentem ameaçados com alguém que abdicou de privilégios “preciosos demais” para recusar, havendo muita diferença em uma camiseta “100% Negro” e outra “100% Branco”. Analogamente, onívoros não precisam usar camisetas de “Orgulho Carnívoro” quando o acesso a churrascarias e animais abatidos por outrem são de tão fácil acesso.A áurea de “superioridade” que subtendem no discurso Vegan é similar ao feminismo: “Você é inteligente demais para rir de uma piada machista? Onde está a liberdade de expressão em usar o humor como ferramenta de descontração? Você é amarga”. Ou ainda: “Quer ser contra a homofobia? Eu aprovo, mas nem fazer piada de 'viado' posso?”. É cômodo ser contra casacos de pele no Brasil: além do clima tropical, não temos por hábito essa vestimenta. O couro, por sua vez, é exaltado desde os clipes de rock, referências de BDSM, passando pelo sertanejo. Muitos parcelam no cartão de crédito o que for necessário por um “couro de qualidade”. Como diria uma amiga “É mais fácil brigar com madames do que com motoqueiros”.O argumento: “Refugiem-se da sociedade que tanto criticam, vão para selva”, pode ser substituído por “Comunista? Vá para Cuba!”; ou seja, “os incomodados que se mudem”. Deveríamos aceitar o mundo masculino, branco, hétero, cristão, lesbo/trans/homo-fóbico? Ou batalharemos por um mundo igualitário?Igualitário para quem?, muitos perguntarão. Para a maioria dos humanos (inclua aí todas as vertentes ideológicas: feministas, esquerdistas, reacionários, nacionalistas etc), é extremamente ultrajante “ceder” qualquer direito aos animais. Para evitar conflitos é preciso silenciar a causa? Quem ganha com isso? Eu? Por ser uma “vegetariana não extremista”, gente boa que acha graça das nossas piadas?Não é esse mesmo ativismo “cheiroso e limpinho” que esperam do feminismo? Sem questionar, sem reclamar, com sorriso no rosto e complacência? Não esperam de nós mulheres que toleremos o machismo de pessoas mais velhas por motivos “culturais”? Não somos nós que brigamos por análises não engessadas em fatores biológicos? Mas tantas e tantas vezes discuti com companheir@s de luta que diziam “É biológico, é natural, bichos são estúpidos”. Há quem defenda que a melhor saída seriam os animais não confinados, livres para enfim ceifar-lhes sem ressentimentos (o chamado “boi verde” ou “boi orgânico”). Isso não foge da perspectiva especista (embora bem-estarista): ao matar com carinho ou crueldade não interferiremos na chacina anunciada.No Brasil, mulheres, travestis, lésbicas, negras, gays, estrangeiros (aqui em SP há muito preconceito com bolivianos), cadeirantes, cegos, surdos, pobres, nordestinos e gordos são segregados e assassinados em crimes de ódio. Mas, por mais alarmantes e estarrecedores que os índices sejam, não encontraremos peças deles em açougues.
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