GUEST POST: RACISMO NUM SITE DE MATERNIDADE
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GUEST POST: RACISMO NUM SITE DE MATERNIDADE


A Luiza, uma produtora teatral, me enviou uma ótima reflexão sobre um caso que rendeu muitas críticas esta semana. 
Na quinta, o site de uma maternidade publicou um post com o título "Minha filha tem o cabelo muito crespo. A partir de qual idade posso alisá-lo?". Escrito por uma empresa terceirizada, o site nem tocou na questão de que não há absolutamente nada de errado em ter cabelo crespo. Pra contrastar com a foto da menininha negra, no cabeçário do site vemos uma família branquinha e feliz.
Depois de vários protestos nas redes sociais (e depois dizem que ativismo de sofá não é importante), o site removeu o post. Fica o texto da Luiza:

Li aqui algumas vezes posts sobre racismo e sobre como isso agride pessoas (especialmente mulheres).
Eu sou branca, beeeem branca e tenho o cabelo muito liso e muito fino. Cresci ouvindo mulheres que diziam ter inveja do meu cabelo. E, claro, como nunca estamos felizes com aquilo que temos, meu sonho é ter cabelos volumosos e cacheados. Acho as mulheres negras estonteantes. Eu acho essa minha cor de lagartixa muito sem graça, pouco charmosa. Sei que é possível que se eu tivesse nascido diferente do que sou, e tivesse desde a infância aturado preconceitos e bullying racistas, talvez não pensasse dessa forma e vivesse alisando o cabelo.
Hoje [dois dias atrás, mas a Luiza escreveu isso no momento, antes do site ser retirado] vi um post no site de uma maternidade. O texto é pequeno em comprimento e imenso em estupidez, ignorância e preconceito. Em tese, serve como um alerta para a saúde das crianças que terão seus cabelos "crespos ou rebeldes demais" alisados. Ao ler, esperava que houvesse (para dizer o mínimo) algum questionamento do porquê de as mães terem a necessidade de alisar cabelos de bebês e crianças. Ao invés disso, me deparei com a seguinte frase: "Com a adesão cada vez maior às técnicas de alisamento, algumas mães recorrem a essas alternativas para deixarem as crianças mais bonitas." O que isso quer dizer? Meninas de cabelos crespos e rebeldes são não-tão-bonitas assim?
Ao invés de tentar conscientizar as mães, o texto da maternidade dá respaldo a esse comportamento e ainda assina embaixo de que as crianças de cabelos não-lisos poderiam ficar mais bonitas, caso suas cabeleiras não fossem como são. E, pra completar, em seguida fornece as opções de escova e de alisamentos que podem ser feitos em crianças, segundo eles, "sem causar danos".
Eu gostaria muito de saber desde quando a maternidade passou a ter, além dos médicos e obtetras, especialistas em estética infantil. Tenho certeza de que a maternidade não se acha racista, mas que apenas está zelando pela saúde das crianças, as quais teriam seus cabelos alisados de qualquer maneira pelas mães, que também querem o melhor para suas filhas -- ou seja, que querem que suas crianças sejam "mais bonitas" e que não sofram com a sociedade que não aceita o cabelo das mulheres de origem negra. 
Mas o texto da maternidade em momento algum questiona o porquê de sofrer por ter um cabelo crespo. É motivo para sofrer? Que tal questionar por que o sofrimento e a dor do alisamento, das escovas e das químicas, é preferível ante o sofrimento psicológico de não se enquadrar numa estética imposta e que não condiz com a realidade?
A meu ver, as mães que se perguntam "Minha filha tem o cabelo muito crespo. A partir de qual idade posso alisá-lo?" devem ter sofrido com seus cabelos ou são incapazes de reconhecer a beleza que a mídia, não declaradamente, não aprova.
Isso me lembra o vídeo "The colour of beauty", que vi aqui no seu blog, sobre como a indústria da moda não aceita mulheres negras e, quando aceita, são mulheres de traços caucasianos "tingidas" com a cor negra. Em um dado momento, a modelo chega ao casting que seleciona meninas para a semana de moda de NY e o produtor diz que as modelos negras tendem a ter mais curvas e "a little wild hips" ("quadris um pouco selvagens"; acho que nem preciso comentar a parte do "selvagens".
[Luiza, acho que precisa explicar, porque tem gente que nunca pensou no assunto: vemos poucas modelos negras na mídia, mas, em geral, quando elas aparecem, muitas vezes vêm associadas a algo animalesco, selvagem, que precisa ser domado. A questão de alisar o cabelo vai na mesma linha: equivale a querer domá-lo, pacificá-lo, dominá-lo, e a querer fazer o mesmo com a dona do cabelo].
Na minha livre tradução, o que esse produtor realmente quer dizer é "mulheres negras não foram feitas para o mundo da moda" ou "o mundo da moda não é feito e não se importa com as mulheres negras". Ele também diz que nunca ouviu "não queremos uma modelo negra", mas que já ouviu "queremos uma modelo negra, mas a modelo negra certa". Ou seja, como disse um cliente dele, "precisamos de uma modelo negra, MAS ela precisa ser uma menina branca banhada de chocolate".
Na minha opinião, querer uma modelo negra que pareça ser branca não é menos racista do que só aceitar modelos caucasianas. É um jeito de dizer "viu só? Nós não somos racistas, temos até uma modelo negra no nosso porfólio!" E a própria modelo do documentário diz que as grifes parecem fazer isso: contratar uma modelo negra só para despistar as acusações de preconceito.
O post da maternidade não é um caso isolado de racismo travestido de "dica de beleza". Ele apenas reproduz um comportamento típico da sociedade, o comportamento das mães que não aceitam a si mesmas e, portanto, também não aceitam o cabelo natural de suas filhas; o comportamento da indústria fashionista que só vende um padrão de beleza com a desculpa de que a cor negra não vende ou que negros não querem comprar determinados produtos (a fácil saída de "não é que a gente seja racista, é que o público negro não é nosso alvo").
No documentário um fotógrafo ainda diz "ninguém quer investir em uma modelo negra para fazer Gucci, Prada ou Valentino. Porque elas são negras, e negras não vendem. O dinheiro é verde, e os brancos é que têm dinheiro. Pessoas brancas comprarão de pessoas brancas."
É um ciclo vicioso e venenoso:
Brancos compram de brancos, porque modelos negras não vendem -> modelos negras não vendem porque negras não são o alvo da indústria -> negras não são público-alvo do mundo fashionista por terem "certos traços", como "quadris selvagens" -> "certos traços" não fazem parte do mundo da moda -> "certos traços" não fazem parte do mundo da moda, então a moda não é feita para mulheres com "certos traços" -> mulheres com "certos traços" só consomem uma mídia caucasiana, livre daqueles "certos traços" -> a mídia é caucasiana porque as mulheres negras tendem a ter "certos traços" que são um "problema de ajuste" no mundo da moda -> mulheres caucasianas se encaixam no mundo da moda por não terem "problemas de ajuste" -> mulheres "sem problemas de ajuste" vendem -> mulheres caucasianas, que não têm "problemas de ajuste", continuam comprando de caucasianos sem "certos traços".
Para mim a questão é: brancos e negros compram de brancos por não terem sequer a opção de ter um produto vendido por uma modelo negra, aquela que tem "problemas de ajuste" por causa dos "certos traços", como "quadris selvagens" e "cabelos crespos e rebeldes demais".
Me parece que, no que diz respeito à indústria da moda e à mídia, antes da ética e do bom senso, o que mais pesa ainda está nas mãos do consumidor. A mídia e o mundo fashion têm um papel de extrema importância na perpetuação do racismo, e de uma maneira muito sorrateira, que atinge diretamente o subconsciente do público em geral. Mas a indústria precisa servir ao público que tem. Acho que é trabalho de cada um entender quais as atitudes que podemos adotar como consumidorxs para ter uma mídia e uma indústria da moda menos racistas. Mas se a indústria fashion dita comportamento, como conscientizar os consumidorxs a mudar seu comportamento?
Não sei as respostas, e nem acho que seja a única solução -- afinal, educação, incentivo à cultura e projetos de conscientização são ferramentas mais do que valiosas. Talvez o mero  questionamento já seja um caminho.




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