Geral
Os desafios de 2014 - AFFONSO CELSO PASTORE
O Estado de S.Paulo - 12/01
Em 2014 o governo enfrentará vários desafios. O primeiro relaciona-se à política fiscal. Embora o Ministro da Fazenda comemore o cumprimento aproximado da meta de superávit primário em 2013, esse resultado somente foi obtido devido às receitas não recorrentes do Refis e do bônus do leilão de Libra. Descontados estes efeitos, e mesmo antes da correção dos efeitos da contabilidade criativa, nos dois últimos anos o superávit primário tem sido insuficiente para reduzir uma dívida pública bruta que é elevada e que se aproxima de 60% do PIB. A piora do resultado primário não vem apenas do lento crescimento das receitas recorrentes, que devido às isenções e desonerações tributárias mantiveram-se praticamente constantes em proporção ao PIB entre dezembro de 2011 e dezembro de 2012, mas principalmente do crescimento das despesas primárias, que no mesmo período tiveram uma elevação de 1,4 ponto porcentual do PIB. A percepção de um crescimento dos gastos primários desproporcional ao permitido pelo crescimento das receitas não recorrentes, ao lado do abuso de transferências por fora do orçamento aos bancos oficiais, que no cômputo da dívida líquida são integralmente deduzidos da dívida bruta como se tivessem a mesma liquidez das reservas internacionais, tem levado a um aumento dos riscos, que fica estampado na elevação das cotações do CDS brasileiro em relação aos demais países da América Latina, desde o início de 2013.
Há quem minimize a importância do crescimento das cotações dos CDS. Afinal, embora uma dívida bruta de 60% do PIB seja reconhecidamente grande, está longe de apontar um risco de default. Os economistas conhecem técnicas através das quais é possível extrair a probabilidade de default da dívida de um país a partir dos prêmios de risco de seus títulos de dívida soberana, e essas técnicas indicam que nas atuais cotações do CDS a probabilidade de um default brasileiro é muito baixa - próxima de zero. Mas não é preciso que o motor do carro se funda para que o aumento do custo de sua utilização force a opção por outro meio de transporte: basta apenas que ocorra uma significativa perda da potência do motor, prejudicando seu desempenho. A situação fiscal atual é muito melhor do que a que existia durante a crise de confiança na transição do governo FHC para Lula, quando a marca de 60% do PIB não era atingida pela dívida bruta, e sim pela dívida líquida, que por sua vez tinha uma elevada proporção corrigida pela taxa cambial. Naqueles anos os prêmios de risco eram muito maiores, indicando uma elevada probabilidade de default, e a depreciação cambial aumentava a dívida líquida do setor público, o que provocava novas depreciações cambiais, fechando-se um círculo vicioso. Não é nada disso que existe atualmente. A razão pela qual temos que olhar para as cotações do CDS não se prende ao risco de default, mas sim às repercussões que uma política fiscal de péssima qualidade tem sobre a taxa cambial, que já vem pressionada pelo tamanho dos déficits em contas correntes, que se tornaram excessivos diante das perspectivas sobre os ingressos de capitais geradas pela alteração no cenário da economia mundial.
O comportamento do déficit nas contas correntes; dos ingressos de capitais; e da taxa cambial, são o segundo desafio do governo. Entre 2010 e 2012 o Brasil tinha déficits nas contas correntes próximos de US$ 50 bilhões, mas em 2013 eles fecharam o ano em US$ 81 bilhões, ou 3,7% do PIB. Em parte isso é uma consequência da política fiscal: ao elevar a absorção total doméstica acima do PIB, a política fiscal expansionista tem sido a responsável pela elevação das importações líquidas. Ao lado disso pioraram os ingressos de capitais. Entre 2010 e 2012 os ingressos de investimentos diretos e de investimentos em carteira de renda fixa e variável superavam em muito os déficits nas contas correntes, gerando superávits no balanço de pagamentos que permitiam uma grande acumulação de reservas. Mas o mundo mudou, e parte dos capitais que nos últimos anos procurava os países emergentes voltou-se para os Estados Unidos, que diante da retomada do crescimento devem continuar atraindo capitais. Embora estejamos longe de uma parada de ingressos de capitais, como a que ocorreu na crise de confiança na transição de FHC para Lula, nos últimos 12 meses os ingressos de capitais caíram um pouco abaixo do déficit nas contas correntes, gerando um pequeno déficit no balanço de pagamentos, e diante da mudança no quadro da economia mundial não há perspectivas de que este quadro se inverta em um futuro próximo. É esta uma das razões para a depreciação do real, que se mantém apesar das intervenções do Banco Central no mercado futuro de câmbio.
Mas o que isso tem a ver com o aumento das cotações dos CDS? O câmbio nominal é um preço de um ativo que se deprecia quando cai a demanda de ativos financeiros brasileiros por parte de estrangeiros, e uma elevação nas cotações dos CDS brasileiro reflete, nada mais, nada menos, do que uma contração na demanda de ativos brasileiros. É esse fenômeno que está por trás da elevada correlação positiva entre a taxa cambial e as cotações do CDS. A tarefa do Banco Central no controle da inflação seria facilitada caso as pressões para a depreciação do real se reduzissem, mas a política fiscal atual provoca exatamente o efeito contrário. Através de dois canais de transmissão: a ampliação do déficit em contas correntes relativamente aos ingressos de capitais; e a contração na demanda de ativos brasileiros por parte de estrangeiros, a política fiscal tem sido uma indutora da depreciação do real.
O terceiro desafio do governo está no controle da inflação. Nos últimos anos o Banco Central teve tolhida parte de sua liberdade para buscar a meta de inflação de 4,5%, conformando-se com a busca de uma meta implícita próxima de 6%, que somente tem sido aproximadamente atingida contando com a "ajuda" do restante do governo. Se não fosse o extremo controle dos preços administrados, que em 2013 elevaram-se apenas um pouco acima de 1%, ao lado do uso intensivo de isenções tributárias reduzindo preços de produtos com peso elevado no IPCA, a inflação teria facilmente superado o teto de 6,5% da meta de inflação. Mas o espaço para estas ações praticamente se esgotou. Como não se dispõe a cortar gastos e os superávits primários são insuficientes, o governo não tem mais espaço fiscal para novas isenções. Nem poderia submeter a Petrobrás a novas sangrias de recursos necessários para a realização de seu programa de investimentos. Sob pena de elevar temporariamente a inflação, o governo não poderá obter ganhos significativos de receita vindos da volta das alíquotas do IPI. No máximo, poderá catar migalhas de receita como a derivada da elevação do IOF sobre gastos em cartão de crédito no exterior.
Limitado na sua capacidade de elevar a taxa de juros, e sem contar com as "ajudas" do passado, o Banco Central vem procurando evitar uma depreciação mais intensa do real através da venda de câmbio futuro. Mas esbarra em duas limitações. A primeira é que a depreciação cambial pode ter efeitos desagradáveis sobre a inflação, mas é necessária para tornar o déficit nas contas correntes compatível com a nova realidade sobe os ingressos de capitais. A segunda é que teria que contar com a ajuda da política fiscal, quer derivado de uma redução na absorção em relação ao PIB que diminuísse o déficit em contas correntes, quer no seu efeito indireto ao produzir uma expansão da demanda de ativos brasileiros por parte de estrangeiros. Mas nada disso é indicado pelo governo. Embora as receitas do Refis e do bônus do leilão de Libra tenham levado as agências de classificação de risco a postergarem qualquer decisão sobre o rebaixamento da nota de risco atribuída ao Brasil, a percepção sobre a qualidade da política fiscal não mudou, e ainda continua pressionando a taxa cambial.
Em resumo, o governo inicia o ano de 2014 como um maratonista que correu os primeiros quilômetros da maratona como se disputasse uma corrida de apenas 10 quilômetros. Perdeu fôlego e tem que ter cuidados redobrados para chegar inteiro ao final da prova.
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