POE E SEUS EXCESSOS
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POE E SEUS EXCESSOS


Eu adoro Edgar Allan Poe (1809-1849). Certo, eu e o resto do mundo, já que ele é um escritor consagrado e referência pra tudo. Eu gosto de como ele não tem amarras, dos seus narradores completamente insanos, e da sua ironia. “O Gato Preto” (original em inglês aqui, tradução pro português aqui) eu acho o máximo. E é um exemplo de que consigo rir de situações tenebrosas, no caso, ahn, de um conto em que o protagonista arranca o olho de seu gato favorito, mais tarde o enforca numa árvore, e depois encontra um outro gato, também preto, também sem um olho, e nem percebe a semelhança bizarra porque estava completamente bebum, e sem querer emplasta o pobre bichano vivo numa parede. Eu não deveria gostar nem um pouco de histórias sobre crueldade contra animais, mas o que fazer se algumas são ótimas? (“A Causa Secreta”, de Machado de Assis, é outra. Aliás, Machado se inspirou bastante nos românticos góticos, né?). Lógico que o conto não é apenas sobre crueldade contra animais. Curiosamente, pessoas que amam gatos, como eu, vão se identificar com ele. Porque tá cheio de descrições do que os gatos fazem conosco no dia a dia. Por exemplo: ficar se esfregando na gente. Colocar-se na nossa frente pra gente tropeçar (duvido que o objetivo seja esse; esse é só o resultado). Eu rio quando o narrador, um louco total, que tem medo de seu gato preto, diz que o felino vinha à noite para arranhar seu coração e sugar-lhe o ar. Quem tem gato sabe bem o que é isso: nossos minitigres gostam de deitar-se em cima do nosso peito (e, antes de deitar, eles precisam se acomodar um pouquinho, e pra isso as unhas são importantes) e ficar nos encarando, enquanto respiram pertinho da gente. A diferença é que a gente não é tão melodramática a respeito de um hábito felino tão comum (e fofo. É nessas horas que nossos gatos tomam posse da gente, como se dissessem “Você é meu humano”). Mas eu rio alto mesmo quando o protagonista mata a mulher. Tá, sei perfeitamente bem que não deveria ver graça num caso desses, mas leia o conto! O protagonista, descendo as escadas, revolta-se que o gato quase lhe faz cair. Então pega um machado (que está assim, ao alcance da mão, no meio da escada!) e, quando vai acertar o gato, “num golpe que seria fatal” (por que nessa hora ele precisa se vangloriar da sua capacidade de matar gatos?), sem querer acerta a esposa. Ok, esse é o meu resuminho. Na realidade, a mulher segura o braço do doido varrido quando ele vai amachadar (inventei, e daí? Shakespeare fazia isso no café da manhã) o gato, e o doido, indignado com a intromissão, enterra o machado na cabeça da santa (essa vai direto pro céu, sem escalas, por ter aguentado um louco bêbado e torturador de animais). E pronto. É a última vez que o narrador se refere à esposa como esposa. A partir de então, ela vira o corpo. E, pra variar, o narrador insano não tem remorso algum. No parágrafo seguinte, ele até se refere ao que fez como “horrível crime”, e nunca mais para pra pensar no assunto. Pelo contrário, ele respira “como um homem livre” ― se bem que ele se refere à ausência do gato, que ele não sabe onde está. Eu também gargalho pra valer quando o vilão sem caráter diz pra polícia que vasculha a sua casa: “Vocês já vão, senhores?”, e começa a mostrar pra eles as paredes tão bem construídas do seu porão. É totalmente exagerado. Mas eu adoro esse excesso do Poe.
Quando li Lolita, e quando escrevi minha tese de mestrado sobre ironia no romance do Nabokov e nas suas duas versões pro cinema (o Lolita do Kubrick, de 1962, e o do Lyne, de 1997), não me dei conta do quanto Poe é uma presença constante no livro. Claro, o narrador maluco de Lolita, Humbert Humbert, num momento refere-se a ele próprio como Monsieur Poe-Poe. Ele lê um poema de Poe para sua ninfeta. Ele chama seu primeiro amor de Annabel, referência ao último poema de Poe, Annabel Lee. Ele usa Poe como justificativa pra sua pedofilia. Tudo isso eu percebi. O que não percebi é que Poe tá em tudo que é Lolita, começando pela estrutura da história ― um homem adulto indo viver na casa de uma viúva que tem uma filha pré-adolescente (Poe fez isso também: a viúva era sua tia, e a filha desta, Virginia, de 13 anos, acabou casando-se com ele).
É que na época da minha tese de Lolita eu não tinha lido outro conto do Poe, “O Coração Delator”. E muito menos visto esta animação formidável (ignore as legendas em português, cheias de erros). Este vídeo da década de 50 é uma graça. Capta toda a essência (não se deve mais falar em essência de obra, mas não resisti) do conto. E amei a narração, a voz, o timbre do ator... Só que quem é o ator? É o James Mason! Como que pode, ó mundo pequeno? James Mason é o ator que faz Humbert no filme de Kubrick! Quer dizer, oito anos antes de ser escalado pra interpretar Humbert, que parodia ou homenageia Poe (como você preferir), Mason já havia emprestado sua voz pra interpretar um outro narrador lunático – este do “Coração Delator”, do Poe. Pra mim, é uma coincidência notável. E não tá na minha tese, porque só descobri o detalhe agora.
Bom, topam uma experiência? Vamos fazer um Clube de Leitura por aqui! Tem um ano e meio que venho querendo copiar a ideia do Idelber, até já pedi permissão pra ele... Então, aproveitando o feriado, adoraria que vocês lessem ou relessem o conto do Poe, “O Coração Delator” (original aqui, tradução aqui), e voltassem aqui pra discuti-lo, sem nenhum compromisso com teoria literária ou academicismos. Só falassem sobre o conto mesmo (e sobre a animação, se quiserem. Tem uma adaptação pros quadrinhos também). Dessa forma, seria uma oportunidade de atender a uma leitora que critica que eu falo demais de coisas inúteis, como Crespúsculo, e não o suficiente sobre literatura. E vocês ainda estariam me ajudando demais, porque terça que vem (glupt) participarei de uma mesa-redonda e darei um minicurso sobre Poe, e não sei nem por onde começar. Todas as ideias serão mais do que bem-vindas!




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