60 ANOS DE LOLITA, UM LIVRO MARAVILHOSO E POLÊMICO
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60 ANOS DE LOLITA, UM LIVRO MARAVILHOSO E POLÊMICO


Em meados de setembro o romance Lolita marcou 60 anos de sua publicação. 
Apesar da trama (o relacionamento sem dúvida abusivo de um homem de quase 40 anos com uma menina de 12), eu amo o livro de Nabokov. Minha dissertação de mestrado, defendida há pouco mais de dez anos, foi sobre como a ironia do romance é transcrita para suas duas versões fílmicas (a de Kubrick em 1962 e a de Lyne em 1997). Não é sobre gênero. Você pode lê-la inteirinha aqui, em inglês. 
Paula Mesquita, repórter do site Lado M, me contatou para uma entrevista, que publico aqui, na íntegra. A matéria da Lado M está aqui.

- Na sua opinião, qual o valor e a importância do livro de Nabokov para a literatura e para a sociedade, de um modo geral?
Minha resposta: Lolita é uma obra-prima, um livro maravilhosamente escrito. Ele trata de um tema terrível, a pedofilia, mas reduzir o livro a este tema é absurdo. Lolita é narrado pelo pedófilo Humbert Humbert, um sujeito pedante e insano que constantemente fala conosco, leitores e "membros do júri", tentando justificar suas ações. Não convence ninguém. Ou melhor, convence muito pouca gente. 
James Mason, o Humbert de Kubrick
Uma das graças do livro é justamente esse contraste que existe entre o narrador, que se acha tão inteligente e equilibrado e que acredita que todos são inferiores a ele, e o personagem, um verme covarde. O narrador, por exemplo, pensa ser irresistível para todas as mulheres que cruzam o seu caminho. Mas o que vemos no dia a dia de Humbert são várias mulheres, principalmente Lolita, resistindo. Humbert é ridículo, e Lolita sabe disso.
A versão de Adrian Lyne
O incrível é que vários leitores interpretem o que Humbert diz como pérolas de sabedoria. Levá-lo a sério é levar o livro a sério, não como uma das obras mais irônicas já escritas. Respeitando Humbert -- algo que Lolita e Quilty definitivamente não fazem --, o leitor começa a dar importância ao que ele diz, como a definição que ele cria de "ninfetas", meninas demoníacas de até 14 anos que seduzem homens adultos. Este é um pedófilo falando. É óbvio que ele vai querer romantizar o que ele faz e culpar a vítima.

- Lolita é considerado um livro polêmico por tratar do relacionamento de um homem mais velho com uma menina. Por mais que a temática seja, portanto, pedofilia, há quem romantize, tratando-a como uma história de amor. Como você vê essa questão? Você acha que o fato do livro ser narrado do ponto de vista de Humbert influencie a perspectiva do leitor?
Sim, tem quem veja o livro como uma história de amor por causa do final. Humbert é um ser abjeto que passa o livro inteiro explorando Lolita. Ele se casa com Charlotte, uma mulher que ele detesta, só para poder ficar perto da sua filha de 12 anos. 
Ele pensa em dar pílulas para dormir para Lolita para poder abusar dela enquanto ela dorme. Ele dá pílulas para Charlotte, para que ela durma e não o incomode. Ele fantasia matá-la. Ele odeia meninas com mais de 15 anos, quando elas não são mais ninfetas. Ele pensa em engravidar Lolita, ter uma filha com ela para poder também estuprá-la, e largar Lolita quando ela já não for mais ninfeta. Ele paga Lolita por sexo e depois rouba seu dinheiro para que ela não possa fugir. Quer dizer... como esse cara pode ser herói pra alguém? Como pode ser levado a sério e visto como sábio? 
Mas, no fim, ao se reencontrar com Lolita (que fugiu dele), que já tem 17 anos e está grávida, ele implora para que ela largue o jovem marido e fique com ele. Ela recusa. E ele se arrepende do que fez com ela. Mas esse arrependimento é convincente? O narrador passa 300 páginas contando sobre como abusar de uma menina é um paraíso, tentando nos convencer como isso é normal e saudável, e no final há um parágrafo em que ele diz que não deveria ter removido Lolita daquele coro de crianças que ele ouve de longe. 300 páginas versus um parágrafo, e a gente se convence de que aquela foi uma trágica história de amor por causa de algumas linhas?
Se o livro fosse narrado por algum dos três outros personagens principais (Lolita, Charlotte ou Quilty), ele seria completamente diferente. Lolita certamente não descreveria o que viveu do jeito que Humbert descreve. Mesmo através da narração não confiável de Humbert, vemos Lolita chorando toda noite antes de dormir, vemos Lolita tentando fugir. Dificilmente Lolita seria um livro tão deliciosamente engraçado se fosse narrado por ela. É possível amar o livro sem amar Humbert. E mais ainda -- sem endossar a pedofilia.
Você lê Psicopata Americano, por exemplo, de Bret Easton Ellis, narrado por um milionário playboy que gosta de torturar e matar pessoas, principalmente mulheres e, a menos que você tenha sérios problemas, você não vê Patrick Bateman como um herói ou um modelo a ser imitado. Não sei como tanta gente interpreta Lolita como um convite à pedofilia, um embate entre puritanismo e liberdade. Puritanismo é não querer que meninas de 12 anos sejam exploradas sexualmente por homens adultos? De qual liberdade estamos falando? Liberdade para quem? 

- De que forma você vê o estereótipo da ninfeta, como a Lolita que Nabokov criou nos anos 1950, sendo perpetuado na sociedade nos dias de hoje? De onde você acredita que venha essa atração de homens mais velhos por mulheres jovens?
O estereótipo da ninfeta realmente pegou, o que pra mim é inacreditável, porque é toda uma sociedade se baseando nas opiniões de um narrador fictício, um pedófilo, e dando-lhe razão. O próprio Nabokov não ficou feliz com a popularização do termo ninfeta: “Fora do olhar maníaco do senhor Humbert não há ninfeta. Lolita, a ninfeta, só existe através da obsessão que destrói Humbert. Esse é um aspecto essencial de um livro singular que tem sido distorcido por uma popularidade artificial”.
Brooke Shields e Susan Sarandon em
Pretty Baby, 1978
Mas a popularidade do conceito de ninfeta já foi maior. No final da década de 1970 e até o começo dos anos 80 tivemos vários fotógrafos lançando livros com fotos eróticas de meninas de dez, treze anos. Tivemos filmes que, embora muito bons por outros motivos, seriam impensáveis hoje, como Menina Bonita, de Louis Malle, que mostrava uma Brooke Shields de 12 ou 13 anos nua, ou mesmo Lagoa Azul, Quando as Metralhadoras Cospem, e Taxi Driver, que erotizavam meninas. 
Natassja Kinski, aos 15 anos, foi um dos maiores símbolos sexuais da década de 80. Luciana Vendramini posou para a Playboy com 17 anos em 1987. Hoje isso não seria permitido. A pedofilia só passou a ser mais combatida nos anos 90, e aí a mentalidade mudou. Hoje continuam fazendo editoriais de moda com meninas púberes em poses sexuais, mas essas representações são muito criticadas.
A atração pela ninfeta, pela Lolita, ainda existe hoje, decerto, mas creio que é vista mais como perversão que como algo aceitável. Lembro de um episódio de A Sete Palmos em 2004 em que Nate, um dos protagonistas da série, conversa com um amigo de infância, que agora tem quase 40 anos e é pai de uma adolescente. E esse amigo lhe conta como sente-se atraído pelas amigas da filha, meninas de 13, 14 anos. Nate (e a série) tratam o sujeito como alguém deplorável, não um modelo a ser seguido. E é estranho que homens interpretem Humbert como um modelo.
Vejamos Beleza Americana, filme de 99 que dialoga muito com Lolita. O próprio nome do protagonista, Lester Durham, é um anagrama de "Humbert learns", Humbert aprende. Então Lester flerta com a ninfeta -- a irmã da filha, que na realidade não é uma ninfeta, e sim uma adolescente de 16 anos --, mas no final, ao saber que ela é virgem e que a imagem de adolescente experiência que ela tenta passar é só aparência (o tema do filme é como os EUA são um país hipócrita de aparências), não faz sexo com ela. E isso é visto como amadurecimento do seu personagem. 
Aya Kiguchi com 13 anos
Mas ainda segue firme na pornografia a ideia de transar com cheerleaders (mais velhas que ninfetas), e no Japão temos o fenômeno das Lolicons. Realmente não entendo essa fantasia tão masculina de querer fazer sexo com meninas. Pode ter a ver com um ideal de pureza, de querer ser o primeiro na vida de uma menina. O padrão de beleza da sociedade também é muito jovem. É aceitável que homens tenham parceiras muito mais jovens, mas não menores de idade, pelo menos hoje em dia na sociedade ocidental. 
E no entanto o tráfico de meninas e a prostituição infantil são frequentes, porque há uma clientela enorme pra isso. Não dá pra entender. Eu vejo um menino de 13 anos como ele é, um menino, não um potencial parceiro sexual. Só posso concluir que essa atração sexual de homens mais velhos por meninas é um sintoma de que algo vai mal no modelo da masculinidade.




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