QUEM QUER LER MINHA TESE SOBRE IRONIA EM LOLITA?
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QUEM QUER LER MINHA TESE SOBRE IRONIA EM LOLITA?


Faz um tempão que estou pra escrever um (ou mais) post sobre a minha tese de mestrado, defendida em 2005. Gosto dela porque trata de temas queridos pra mim: cinema, literatura, Nabokov, Lolita, Kubrick, ironia, narração em off, essas coisas. Você pode lê-la na íntegra aqui, em inglês. Mas, pra que você possa se situar um pouquinho (e porque sei que não é todo mundo que tem tempo ou vontade de ler uma tese de cento e poucas páginas, por mais interessante que ela seja — e, sem falsa modéstia, minha tese ficou bem interessante), vou falar dela um tiquinho.
Então, a tese recebeu o título de “What have they done to Lolita? The transposition of irony from Nabokov's novel to Stanley Kubrick's and Adrian Lyne's film versions” (“O que fizeram com Lolita? A transposição de ironia do romance de Nabokov às versões fílmicas de Stanley Kubrick e Adrian Lyne”). Essa primeira parte do título é uma referência ao trailer do filme de 62, que perguntava algo parecido, “como fizeram um filme de Lolita?”.
O livro do Nabokov é hoje considerado um clássico indiscutível, mas, claro, nem sempre foi assim. Em 1955, quando o escritor russo tentou publicá-lo, foi recusado por várias editoras. Quando finalmente conseguiu, virou uma espécie de sucesso-escândalo, e foi censurado em muitos países. Eu só vim a lê-lo quando adulta, e fiquei imediatamente hipnotizada por ele. Nem tanto pelo tema, mas pelo estilo. Lolita é um dos romances mais lindamente escritos que já li. Nabokov é um exemplo pra qualquer um que pensa que jamais vai dominar uma língua estrangeira. O inglês (Lolita está escrito em inglês) não foi nem sua segunda língua, mas sua terceira, depois do russo e do francês. E, no entanto, são poucos os autores americanos, ingleses, canadenses, australianos, sul-africanos etc (qualquer autor de país que tenha inglês como língua nativa) que têm um inglês tão rico quanto o de Nabokov. Lolita é praticamente uma declaração de amor à língua inglesa.
Lamento dizer que Lolita é também dos romances mais divertidos que li. É chato atestar isso (faz com que eu pareça uma sádica insensível), porque o livro trata de mil e um assuntos trágicos, principalmente do abuso infantil. Pra quem não conhece a história, quem a narra é um professor de 38 anos chamado Humbert Humbert. Humbert é um pedófilo. Só se interessa sexualmente por meninas com menos de 12, 13 anos. Ele atribui sua predileção a uma paixão de infância, quando ele era um garoto e se apaixonou por Annabelle. Só que ele cresceu, e suas obsessões, as ninfetas (termo inventado por Nabokov), seguiram na mesma idade. Ele vai parar nos EUA, onde aluga um quarto numa casa. Lá mora Charlotte, uma mulher que ele considera vulgar, e que ele topa tolerar pra ficar perto de sua filha, Dolores, ou Lola, ou Lolita, uma menina de 12 anos. Ele fantasia colocar remédio pra dormir na bebida das duas, pra poder abusar de Lolita sem que ela perceba. E até se casa com Charlotte, pra ficar perto de seu objeto de desejo. Logo ele descobre que o plano de Charlotte é mandar Lolita pra um colégio interno. Charlotte lê o diário de Humbert e, entre enojada e revoltada (com justiça), sai de casa. Na rua, é atropelada e morre. Humbert aproveita para mentir para seus poucos conhecidos jurando que, na realidade, é o pai de Lolita. E vai buscá-la no acampamento de férias. Logo Humbert está transando com Lolita e viajando com ela pelos EUA, sem perceber que um outro pedófilo, Quilty, os segue.
Quer dizer, contando a história assim, é horrível, eu nem discuto. Mas não dá pra cruficificar um autor, um livro, um filme, pela sua trama. Na vida real, Nabokov não era um pedófilo. Sua obra-prima não serve pra validar toda uma cambada de estupradores. O pior que o livro fez foi criar termos como Lolita e ninfetas, usados para que homens adultos babem de desejo por meninas menores de idade — o que simplesmente deveria estar fora de cogitação pra qualquer pessoa consciente. Mas o incrível do livro não é tanto do que ele fala, mas como está narrado.
Seu narrador e protagonista, Humbert, é um monstro, não há dúvida. Não apenas por transar com uma menina, mas por pagar-lhe, de vez em quando, para que ela aceite transar com ele (e depois roubar-lhe o dinheiro), e por se aproveitar de que ela não tem lugar pra ir. E, pior, se é que pode ser pior, por pensar no que ele fará quando Lolita completar uma idade (lá pelos 15, 16 anos) que ele não acha mais desejável. Ele cogita até engravidar Lolita para que ela lhe dê uma filha que ele também poderá estuprar!
E como isso tudo é engraçado? Bom, pois é, é o jeito como está contado. Humbert se leva a sério, mas no fundo é um paspalhão. Em inúmeras passagens, Lolita soa mais esperta que ele — o que é estranho, já que a narração é todinha de Humbert. Ele se acha um poeta apaixonado, e justifica seu desejo por ninfetas citando outros loucos, como Edgar Allan Poe e Dante, que também tiveram suas Lolitas (mas Humbert omite que eles eram meninos quando se apaixonaram por suas meninas). Além disso, o livro começa com o (falso) testemunho de um psiquiatra, que decide publicar os diários de Humbert, morto num hospício. Em várias ocasiões, Humbert se refere a nós, seus leitores, como “senhoras e senhores do júri”, e tenta convercer-nos que o que ele fez foi por amor. O tom do romance, do início ao fim, é totalmente irônico. Lolita é frequentemente usado para ilustrar um modelo de ironia. Kubrick, tão gênio na sua área quanto Nabokov na dele, decidiu transformar Lolita em filme em 1962. Deu tudo errado. Hollywood ainda adotava a auto-censura imposta pelo Código Hayes, e Kubrick teve que reescrever o roteiro um monte de vezes. Foi obrigado a transformar Lolita numa garota de 15 anos (interpretada por Sue Lyon, que pode parecer mais velha), e a descartar qualquer trecho menos sutil. Sem falar que, em 62, Kubrick ainda não era o monstro sagrado que se tornou após fazer Doutor Fantástico, 2001, Laranja Mecânica, Iluminado e Nascido para Matar. Era o início de sua carreira, mesmo que ele já fosse respeitado por dirigir O Grande Golpe, Glória Feita de Sangue e Spartacus. Mas Kubrick admitiu depois que, se soubesse dos obstáculos que teria que enfrentar para fazer Lolita, não o teria feito.
Ainda assim, o Lolita de Kubrick é uma graça. James Mason emprega o toque de humor negro no seu Humbert, Sue está muito bem, e Shelley Winters rouba todas as cenas como Charlotte. Mas o meio que Kubrick escolheu para driblar a censura e contar a história foi dar mais destaque a Quilty, aqui interpretado por Peter Sellers, a lenda. O que concluo na minha tese é que, embora o Lolita de Kubrick não seja fiel ao livro no que se refere à trama, ele capta o espírito irônico do romance de Nabokov. É péssimo falar em fidelidade e espírito, porque a gente cai na tentação de crer que uma obra contem uma essência que deve ser seguida (e não de ser uma obra sujeita a interpretações múltiplas). Os estudiosos de cinema dizem que é errado insistir em fidelidade. Mas, ao mesmo tempo, continuam comparando filmes e livros e falando em fidelidade. Não é fácil escapar.
Em 1998, 26 anos depois de Kubrick, Adrian Lyne quis fazer o seu Lolita (veja o trailer). Lógico que Lyne nunca teve um décimo da reputação daquele que é elencado como o segundo diretor mais consagrado da história do cinema (geralmente atrás apenas de Hitchcock). Pelo contrário, Lyne é mais conhecido por sucessos comerciais (e polêmicos) como Flashdance, 9 ½ Semanas de Amor, Atração Fatal, e Proposta Indecente. Ele viu Lolita como sua chance de redenção, de fazer um filme de arte, que fosse levado a sério. Não conseguiu muito. E, tal como Kubrick, também teve problemas com a censura. Os anos 90 foram marcados pela luta contra a pornografia infantil. Clinton havia acabado de proibir que qualquer filme usasse uma criança numa relação sexual, mesmo que fosse um dublê. O Tambor (vencedor do Oscar de filme estrangeiro em 79), por exemplo, mostra uma cena de sexo implícito entre duas crianças. E foi recolhido em algumas locadoras nos EUA nos anos 90. Por causa de toda essa atenção, que em casos como o do Tambor beiravam à histeria, Lyne penou até encontrar uma distribuidora. Lolita foi lançado nos EUA oito meses depois de passar na Europa, o que fez Lyne reclamar: “Se eu estivesse fazendo um filme sobre uma menina de 13 anos que é cortada em pedacinhos por um canibal, eu não teria problemas com a censura”.
O Lolita de Lyne é sério até a medula. Narrado em off por um Jeremy Irons atormentado (e arrependido pelo mal que causa a Lolita), com Melanie Griffith como Charlotte, Frank Langela (de Frost/Nixon) como Quilty, e Dominique Swain como Lolita (ela tinha a idade de Sue Lyon, mas parece mais nova, e Lyne a veste com trancinhas e aparelho nos dentes), o filme segue as mesmas palavras e ações do livro. A diferença, gritante, é o tom. O Lolita de Lyne não é irônico.
Adoro essa citação que peguei de uma revista eletrônica chamada Suck (minha tradução): “[no livro] cada perversão, cada abuso, cada dia que Humbert mantem Lolita prisioneira é visto como poesia de Keats. O livro nunca condena Humbert; ele o celebra. É o que se chama ironia, grande como um celeiro, e Lyne não entendeu isso de um modo tão gritante que a gente não sabe como um cara com tão pouca visão pode ser habilitado a dirigir um carro”.
Mas, pra falar de como o livro e o filme de Kubrick são irônicos, e como o filme de Lyne não é, antes preciso tratar de ironia. Num outro post, pois este já tá quase tão longo quanto a minha tese.
Leia aqui: 60 anos de Lolita, um livro maravilhoso sobre um tema terrível.




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